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segunda-feira, 4 de maio de 2020

O ensino de música na educação bancária

Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política. O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação” (FREIRE, 2019, p. 119).
Na realidade prática das escolas privadas que, sobretudo hoje, atendem em grande parte a chamada classe média, é facilmente percebida a presença e suposta alta valorização do ensino de arte, principalmente, o da música. Não por esta ser uma linguagem artística de maior valor, ou por preferência específica daqueles que formulam a matriz curricular do colégio — ainda que isso possa de fato influenciar — mas sim por seu resultado comercial, que muito dialoga com a cadeia de indústria fonográfica hoje dominante. O educador musical que chega à sala de aula na esperança e anseio de, enfim, pôr em prática toda a bagagem teórica adquirida em três ou quatro anos de formação nos cursos de licenciatura da área, certamente sente-se rapidamente perdido e desanimado em sua atuação. Anos de estudo e suposto preparo para, agora, parecer que nada funciona? Que todas as “fórmulas” de sucesso metodológico em música não contemplam as reais necessidades da escola e, por consequência, de seus alunos? É provável que, em uma primeira leitura e reflexão sobre a situação, sejam essas as perguntas surgidas. Mas cabe novas questões que podem alterar todo o rumo de pensamento do educador nesse momento:

1. Quais são essas reais necessidades da escola com as aulas de música?
2. O que então esperam e precisam de fato os alunos de sua aula?

Respondidas essas duas, criticamente e com distanciamento, pode ser proveitoso se fazer mais estas questões: 

3. Essas necessidades da aula de música, apresentadas pela escola, tem qual objetivo? 
4. Como se sentem os alunos diante dos “caminhos” deste objetivo: animados? Desanimados? Curiosos? Cansados?

Se, ao se permitir tais perguntas, o educador chegar a uma conclusão geral de que o objetivo final da escola com suas aulas é uma apresentação, por exemplo, talvez haja um problema. Se os sentimentos envolvidos na pergunta de número 4 forem “desanimados”, “cansados”, como sugeridos, daí o problema é ainda maior.
A educação libertadora que se opõe à educação bancária, como proposto pelo educador Paulo Freire em seu livro Pedagogia do Oprimido (2019), abre nossa visão para o seio do problema real dessa angústia prática na educação musical. Quando Freire diz: “Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política”, pode-se entender que qualquer projeto, tópico ou conteúdo abordado em aula deve surgir a partir das necessidades dos educandos, daqueles que de fato participam da aula, e não da necessidade institucional. Não é comum perceber um desencontro entre o anseio da turma para com a aula e os anseios institucionais da escola com esta mesma aula? Será que este desencontro não nasce justamente porque um não contempla o outro? E por que um não contempla o outro? Por que escola e alunos, que deveriam estar unidos num mesmo objetivo, se desencontram? Cabe aqui uma quinta e fundamental pergunta:

5. A quem ou ao que a escola serve?

Observe o dia a dia escolar. Suas reuniões pedagógicas — caso estas ocorram e os pedidos e questionamentos por parte da direção e/ou coordenação pedagógica: você percebe a citação recorrente de “pais”/“mães” como sujeitos nesses pedidos? Se sim, parece, ainda que de longe, que estes exercem algum domínio ou influência sobre os caminhos traçados pela escola? Muito provavelmente, diante de todo este cenário aqui exposto, tanto tais citações quanto sua influência são verdadeiras. E isso está diretamente ligado às suas aulas, caro(a) educador(a). Se pais e/ou mães são identificados como influenciadores nos caminhos que a escola traça, uma conclusão é evidente: a escola serve aos pais e/ou mães dos alunos, não a eles. E talvez esteja aí a falha geradora de toda a instituição. 
Pensemos nessa linha de “quem-serve-a-quem” dentro da escola, seguindo o raciocínio construído até então:

Fonte: o autor, 2020. 

A escola serve aos pais e/ou mães. Para que a escola possa atender aos pedidos dos pais e/ou mães, ela precisa de uma rede — pessoas — que a auxilie nessa conquista. Quem são essas pessoas? Quem forma essa rede que desenvolve diferentes atividades e ações que resultam em algo escolar — seja uma prova, uma feira, uma apresentação e etc? Só uma classe específica dessa rede me vem à mente: os professores. Seria lógico então, nesse raciocínio, considerar que os professores servem a escola, ampliando nossa rede:

Fonte: o autor, 2020. 

Nessa hierarquia os professores também necessitam de braços que possibilitem sua parte ser feita. Esses braços, como deve ser fácil a todos concluir, pertencem ao corpo discente, em outras palavras, aos alunos. 
Sendo o alunado uma massa técnica de indivíduos cujo objetivo escolar não ultrapassa a rasa função de cumprimento “estético-burocrático”, suas atividades pedagógicas em quaisquer disciplinas, inclusive nas linguagens artísticas, como música, se tornam superficiais e perdem a essência que está exatamente no desenvolvimento do pensamento crítico, analítico e reflexivo. O modelo de educação bancária, como propõe Freire (2019), nada mais permite aos estudantes do que tornarem-se depósitos de conteúdos previamente estabelecidos para eles. A educação musical, por sua vez, choca-se a esse propósito burguês no âmago de suas diretrizes que vem ganhando destaque de meados do século XX até hoje: realizar modelos de ensino artístico a partir dos saberes prévios do grupo a quem as aulas se destinam e a elas, consequentemente, tem todo o domínio dos caminhos que deve seguir. Uma vez que essa liberdade didática não lhes é dada, o ensino da arte perde sua potência singular de resistência ao modelo tradicional de ensino, tornando-se igualmente parte do mesmo sistema castrador e regulador das estruturas socioeconômicas — bem como de suas desigualdades consequentes — e quebrando possíveis expectativas nos educandos, que pouco ou nenhum valor enxergarão no fazer e educar artístico. 
A visão bancária da educação em nenhum momento entendeu o ensino de arte — seja qual for a linguagem — como processo intrínseco da educação integral e de direito universal de todo e qualquer indivíduo. Pelo contrário, a entende e manipula seus desdobramentos apenas com o intuito de manter os propósitos capitais que uma educação como produto defende. Como educadores, alinharmo-nos a essa lógica é tornar necrófila — tomando de empréstimo outro termo adotado por Freire (2019) — toda e qualquer justificativa que se possa dar para o incremento e ampliação do espaço e valorização do ensino de arte na educação básica. Se, de alguma forma, sua inserção nas escolas-banco não for minimamente subversiva à esta lógica, é possível que em pouco tempo não haja mais sequer a necessidade do showbussiness que ainda nos mantém, mesmo em tais condições, no espaço educacional privado.


Referências

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 70 ed. São Paulo: Paz & Terra, 2019.



Junior Azuos

Educador musical e pianista, graduado no curso de Licenciatura Plena em Música do Centro Universitário Fiam-Faam. Atua como educador em escolas filantrópicas e da rede privada de educação infantil e ensino fundamental. 

Facebook: facebook.com/juniorazuosmusica
Instagram: instagram.com/juniorazuos

sábado, 17 de novembro de 2018

Consciência negra: não é apenas um dia, mas um chamado à reflexão, os professores podem contribuir

Prof. Dr. Márcio Jean Fialho de Sousa
Universidade de Montes Claros - UNIMONTES
E-mail: pcopmarciojean@gmail.com

O Dia da Consciência Negra é uma data bastante importante para refletir especificamente sobre a importância dos negros para a constituição da cultura nacional e, acrescento ainda, é um momento para homenagear todos àqueles que sacrificaram e renderam suas vidas por esta terra chamada Brasil.
Diante disso, vale pensar sobre os preconceitos e racismos que, ainda hoje, a comunidade negra tem sofrido no seu cotidiano. Muitas vezes esse sofrimento nem chega a ser resultado de agressões físicas, o que não deixa de acontecer também, mas vêm de onde não se espera, e de pessoas que, muitas vezes, também nem se dão conta de que seu discurso pode estar à serviço da propagação de preconceitos e racismos resultantes de uma história que teve início há muitos séculos antes.
Na escola, por exemplo, o papel do professor é de extrema importância para que o respeito às diferenças possa ser propagado. Esse cuidado pedagógico, porém, deve estar sempre preocupado com parâmetros que valorizem o ser humano por ser humano e não por pertencer a esta ou aquela etnia, raça, gênero, nação ou língua. Desse modo, o discurso educacional empregado nas salas de aula, pelos professores, é responsável por grande parte da formação das crianças em sua fase de formação cognitiva. Isso ocorre porque o professor, na escola, é o modelo de adulto que a criança tem referência, e nele se espelhará muitas vezes. Por isso, a responsabilidade do professor de educação infantil e das séries iniciais, por exemplo, é decisiva para toda a carreira acadêmica da criança e para a formação da sua cidadania — claro que os pais têm maior responsabilidade nesse processo, porém não é possível ignorar a ação dos professores nesse ínterim. 
Desse modo, urge que se faça um debate acerca dos discursos educacionais como formadores de conceitos. Para isso, lançarei mão de dois textos literários, a saber “A menina Vitória”, de 1965, escrito pelo angolano Arnaldo Santos, e “A menina do lápis de cor”, de Silvana Martins, escritora afro-brasileira, para ilustrar como a educação pode ser propagadora de valores que elevem o ser humano à sua verdadeira dignidade e como, ao mesmo tempo, pode ser propagadora de valores que excluem o negro da sociedade, vendo-o como inferior. 
Os estudos africanos e afro-brasileiros têm ganhado espaço nos diversos meios educacionais de modo progressivo. Esse fato deve-se, em grande parte, às leis 10.639, de 2003, e a 11.645, de 2008, que regulamentam e obrigam o ensino básico da educação nacional a incluir no currículo oficial da rede a temática da “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. 
A lei de 2003, em seu inciso 2º, dispõe que os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, “em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” — o mesmo é dito no inciso 2 da lei 11.645. Deste modo, sendo a Literatura a expressão de um povo, ao mesmo tempo em que nasce de determinado povo, dando voz aos aspectos de sua identidade, de seus valores e crenças, é lícito que os professores deem voz ao povo que foi silenciado por séculos a fio, mas que ao mesmo tempo, de modo diferente ao realizado pelos europeus que aqui chegaram e se instalaram, foram também responsáveis pela formação da nação brasileira, passando desde a formação do português brasileiro, até às tradições, culinária e o jeito brasileiro de ser.
Ocorre que essas leis são apenas os primeiros passos para uma mudança profunda nas estruturas educacionais, e essa transformação não ocorrerá de uma hora para outra, será necessário ainda percorrer um grande caminho para a mudança de toda uma estrutura cultural que há séculos vinha sendo propagada, vivenciada e perpetuada na e pela história. 
Segundo Ruth Amossy, a construção de um discurso e sua aceitação se desenvolvem por meio de estereotipagem, ou seja, o destinatário do discurso avalia a mensagem veiculada a partir de um modelo pré-construído dentro de categorias por ele difundida e no interior da qual ele a classifica. Em outras palavras, o público não avalia apenas o discurso, mas o lugar do qual ele é produzido (AMOSSY, 2005, p. 125-126). Sendo assim, se o produtor do discurso é um professor, socialmente, seu posicionamento estereotípico é de autoridade, por isso tem grande peso e importância o que ele diz. Daí a autoridade, a validação e o compromisso do discurso do profissional da educação. 
Nesse sentido, estão de acordo Kabengele Munanga e Maria Antonieta Alba Celani ao afirmarem que a constituição da identidade de um indivíduo e de um povo se dá por meio da linguagem. Para Munanga, a linguagem é também uma das manifestações mais próprias de uma cultura, pois longe de ser apenas um veículo de comunicação objetiva, é testemunho das experiências adquiridas por um povo, compõe sua memória coletiva e seus valores (MUNANGA, 2005-2006, p. 48). Celani, por sua vez, endossa essa perspectiva na medida em que afirma ser a linguagem uma ferramenta psicológica, necessária para o estabelecimento das práticas sociais, e é nessas práticas que o indivíduo se constitui como ser humano (CELANI, 2005, p. 43). É nessa perspectiva que será analisado o discurso educacional presente nas narrativas selecionadas para este estudo, elencadas no início desta comunicação.
Os contos “A menina Vitória”, de 1965, do angolano Arnaldo Santos, e “A menina do lápis de cor”, de 2015, da escritora afro-brasileira Silvana Martins, apresentam narrativas ficcionais de formação que exemplificam situações que representam a realidade nas escolas quanto ao poder do discurso pedagógico, recorrentes em sala de aula, e que precisariam ser repensadas pelos profissionais da educação com o intuito de promover o respeito e a convivência com a diferença. 
No texto de Arnaldo Santos é apresentada a história de uma menina negra que ascende socialmente ao se tornar professora, ficando conhecida como a menina Vitória, professora da 3ª classe.
[Ela] era uma mulatinha fresca e muito empoada, que tinha tirado o curso na Metrópole. Renovava o pó-de-arroz nas faces sempre que tivesse um momento livre, e durante as aulas gostava de mergulhar os dedos nos cabelos alourados e sedosos de uns meninos que se sentavam nas primeiras filas (SANTOS, 1985, p. 83).
Vale notar que este conto foi escrito no período em que Angola ainda era colônia portuguesa, visto que a independência do país se deu, oficialmente, no dia 11 de novembro de 1975 e o texto é de 1965. Fato importante a ser notado, pois isso implica dizer que saber que a menina Vitória é uma negra que teve acesso à educação formal e, além disso, ter estudado na Metrópole, unido ao esforço de se parecer branca, sempre renovando o pó-de-arroz, e a preferência pelos alunos com fenótipos europeus a coloca no lugar de uma assimilada. 
Essa categorização do termo assimilado foi designada pelo governo português, no ano de 1926, atualizada em 1929, e reforçada no Acto Colonial, promulgado em 1930. Segundo consta, e a critério do governo, o assimilado 
[...] tinha de ter 18 anos de idade, demonstrar que sabia ler, escrever e falar português fluentemente, ser trabalhador assalariado, comer, vestir e ter a mesma religião que os portugueses, manter um padrão de vida e de costumes semelhante ao estilo de vida europeu e não ter cadastro na polícia (ZAU, 2015). 
Os que não se encaixassem nessa descrição eram designados indígenas. Deste modo, ainda que negra, a menina Vitória sentia-se branca e agia como uma europeia, inclusive humilhando e rebaixando seu povo, como se tivesse esse direito e como se não pertencesse a ele. Ao receber o novo aluno Gigi, que tinha uma pronúncia ruim do português, mas que consegue acessar a escola por meio do muito esforço feito pelo pai que queria vê-lo secretário, a professora olha-o com desconfiança e o coloca no fundo da sala junto a outra criança negra, chamado Matoso e que se tornara adjetivo, na boca da professora, para determinar tudo o que fosse ruim e desprezível na sala de aula: “ ‘Pareces o Matoso a falar...’, ‘Sujas a bata como o Matoso...’, ‘Cheiras a Matoso...’ – e ele [o Matoso] guardava-se cada vez mais à carteira, transido por aqueles comentários impiedosos” (SANTOS, 1985, p. 83) da professora, tudo isso porque, além dela tê-lo recebido mal, desde a primeira aula, “não escondera a sua má impressão, com alusões veladas à sua bata de brim grosso” (SANTOS, 1985, p. 83). O relacionamento da professora piorou ainda mais quando, certa vez, Matoso a respondeu em quimbundo dizendo “O quê, julgas que eu sou da tua laia...!?” (SANTOS, 1985, p. 83). 
Desse modo, a afronta à professora assimilada seria excessiva, afinal, além de não se reconhecer entre os seus, ela ainda teria sido insultada em uma língua destinada aos indígenas, classe subalterna, colonizada e pobre. Porém, deixando de assumir seu papel de educadora, afinal estava apenas para promover a manutenção do status quo, o que fazia ela era ir jogando pela sala o nome do aluno com crueza, “criando um símbolo maldito” a partir da figura da criança.
Mediante a indiferença da professora, Matoso acaba por exteriorizar sua real cultura, seus valores, ao utilizar o quimbundo dirigindo-se a ela. Desse modo, assim como dito por Munanga, a língua representou naquele ato o testemunho de suas experiências, de seu povo (MUNANGA, 2005-2006), logo, mais que o significado das palavras proferidas, o que mais afrontou a menina Vitória foi a língua utilizada, pois esta demarcou a identidade daquele povo, a qual ela também estava inserida e que, de certa forma, fazia parte de sua essência, mas que foi rejeitada por ela.
Por outro lado, sendo a professora a autoridade reconhecida socialmente naquele espaço, restaria ao aluno o recolhimento e a insatisfação por fazer parte daquele lugar. Outros alunos, vendo a situação, acabavam por se retraírem também, limitando sua participação nas aulas o quanto podiam. Gigi, por exemplo, retraiu-se: 
Olhava para os colegas de soslaio, inseguro. [...] não respondia quando a menina Vitória o chamava à lição, receando o despropósito que o identificasse com o Matoso. [...] diminuía-se ainda mais para não ser notado, esforçando-se num mimetismo impotente por imitar gestos dos meninos da baixa, [e dizia] Tenho que ser como eles (SANTOS, 1985, p. 83). 
Em “A menina Vitória”, o aluno Gigi acaba se limitando cada vez mais no seu desenvolvimento cognitivo, resultado do medo provocado pelas risadas dos colegas diante das correções grosseiras feitas pela professora, sendo assim, “Esvaziava-se das pequeninas realidades insignificantes que ele vivia, das suas emocionantes experiências de menino livre, agora proibidas e imprestáveis” (SANTOS, 1985, p. 84), apenas em casa externava toda a sua insatisfação e insultava com muita fúria a professora. Matoso, com o passar do tempo, já não se debatia, nem chorava, “Apenas no rosto as suas feições endureciam sob a pressão dos maxilares contraídos. Exasperava-a” (SANTOS, 1985, p. 84).
O texto de Arnaldo Santos é capaz de levar o leitor à realidade do contexto da escrita. Por meio de Gigi e de Matoso é possível perceber o sofrimento de um povo oprimido e explorado, tendo como seus maiores algozes não propriamente os colonos portugueses, mas os próprios colonizados trabalhando para a estabelecimento dos poderes aos quais também eles estavam subjugados, tendo, neste caso, o discurso da professora como chancela para a permanência da discriminação e rebaixamento da maioria.
No texto de Silvana Martins, por seu turno, publicado cinco décadas depois, a violência é aparentemente menor que a apresentada por Arnaldo Santos, porém simbolicamente perpetua, de modo camuflado e sutil, os mesmos valores racistas presentes em “A menina Vitória”.
Em “A menina e o lápis de cor”, Silvana Martins retrata o conflito vivido por uma criança negra que mediante a tarefa de desenhar sua família se dá conta de que o lápis “cor de pele” não condiz com a cor de seus familiares, o que traz à discussão o valor dos discursos presentes em termos e referências escolares aparentemente despretensiosas e sem valor ideológico. 
“A menina e o lápis de cor” narra uma situação vivida por uma criança ainda no período da alfabetização: “Ela ainda estava aprendendo as primeiras letras”, informa a primeira linha do conto. Nesse período a criança adorava ir à escola e aprender coisas novas. Era um momento de grandes descobertas que ela levaria para a vida toda. Certo dia, a professora propôs que cada um desenhasse sua própria família. A menina toda contente e satisfeita desenhou toda a família por ordem de altura: o pai, o irmão, a irmã, a mãe e ela. O grande dilema, porém, apareceu no momento em que ia começar a colorir. Foi então que ela perguntou:
— Professora, que cor eu uso para pintar minha família?A professora se aproximou com cuidado, parecia que as palavras ficaram dentro dela. Ela pensou muito e me disse: “Use o cor de pele para pintar sua mãe e você e o marrom ou preto para pintar os outros”.
— Mas professora, esse cor de pele é rosado, e o preto é muito escuro, eu nunca vi gente dessas cores. A senhora já viu?A professora balançou a cabeça e sorriu. Disse docemente:
— Eu nunca vi (MARTINS, 2015, p. 175).
De fato, esta cena é, ou já foi, bastante corriqueira nas escolas, porém, por traz da doçura da professora, ainda que ela não endossasse diretamente a ideia pressuposta, há naquela frase uma classificação racial e preconceituosa de que a cor da pele deve ser aquela cor clara, cuja proximidade estaria na cor rosada, tal como o estereótipo europeu e norte-americano. O problema gerado na discussão, no entanto, não foi resolvido. A criança teve que levar a questão para casa:
— Mamãe, tenho um problema...
— Qual, querida?
— Como faço para pintar minha família, se cada um aqui em casa tem uma cor?Minha mãe sorriu e disse:
— Teremos que comprar uma caixa de lápis com mais cores, que tenha vários tons de marrom.No caminho para casa eu lhe perguntei por que cada pessoa tem uma cor, e minha mãe me explicou, do jeito dela, que papai do céu fez as pessoas assim para que elas pudessem entender que são as diferenças que tornam cada ser especial. (MARTINS, 2015, p. 176).
Diferentemente da história de Gigi, a menina do lápis de cor teve como contar com a ajuda da mãe que prontamente e com simplicidade, e como a educadora primeira, ensinou à filha que as diferenças existem e sempre existirão, e que cada pessoa se torna especial por suas especificidades, tarefa com que a professora poderia ter contribuído. 
Chegando à escola a menina mostrou o cartaz à professora:
— Pronto, professora, agora como eu escrevo os nomes?Ela pegou meu cartaz e sorriu.
— Sua família é colorida assim?
— Sim, temos negros de todos os tons lá em casa.
— E você, de que cor você é?
— Eu sou negra, professora, como todos os outros lá de casa. (MARTINS, 2015, p. 176).
Como se pode notar, o discurso racista embutido no lápis de cor “de pele” não foi o suficiente para rebaixar e/ou promover maiores problemas para o desenvolvimento cognitivo da menina questionadora, pelo contrário, justamente por características próprias, a inquietação da aluna fez com que ela fosse a procura de respostas com outra pessoa imbuída de autoridade, neste caso, a mãe. 
Dessa forma, a linguagem foi efetiva e afirmativamente empregada para o estabelecimento das convivências sociais, de modo que a criança pode, nesse processo, reconhecer-se como indivíduo distinto, assim como todos os outros o são, mas de modo algum inferiorizada como ser humano, tal como já refletira Maria Antonieta Alba Celani ao discursar sobre o papel da linguagem na constituição do sujeito (CELANI, 2005, p. 43). Pelo contrário, “a identidade do indivíduo vai se constituindo pelo contato com o outro e por meio de uma troca contínua que permite a ele estruturar-se e definir-se pela comparação e pela diferença em um processo de reconhecimento”, acrescenta Alcione Carvalho (2012, p. 88).

Considerações finais

Tentando esboçar algumas considerações finais, vale lembrar que a história da cultura e da valorização do negro no Brasil aos poucos tem ganhado espaço significativo, particularmente, desde o ano de 1933, quando Gilberto Freyre publica a obra Casa-grande & senzala. Sem, no entanto, ter a pretensão de analisar essa obra neste curto espaço que cabe este estudo, essa obra de Gilberto Freyre, de certo modo, foi a responsável por mostrar uma vida real e verdadeiramente humana dos negros, e não distinta das dos outros brasileiros, aqueles que ainda os ignoravam. Claro que muitas questões já foram levantadas sobre a obra, mas não vêm ao caso, o que vale aqui é a ressignificação do negro que a obra propôs. 
Depois dessa divulgação promovida por Freyre, a década de 1970 é a que apresentou novos movimentos sobre as questões étnicas e raciais no Brasil: “Movimentos sociais e a permanência da comunidade negra em revelar o abismo social entre cidadãos brancos e negros existente no país” (CARVALHO. LIMA, 2012, p. 10), inspiradas no movimento pelos direitos civis dos Estados Unidos. Particularmente a partir dessa época, muitas ações positivas surgiram e tem surgido para a valorização da cultura e da história do negro como essencial para a formação da cultura brasileira. 
As mais recentes dessas ações formais deram-se com as leis 10.639 e a 11.645, que têm por fim último a promoção formal e obrigatória dos estudos culturais negros e afro-brasileiros nas escolas de todo o Brasil. De fato, não será, porém, uma ou duas leis que se responsabilizarão para que o que se propõe seja cumprido, mas sua aplicação efetiva, que só será possível se houver profissionais comprometidos e conscientes da importância e do reconhecimento do estudo e da valorização de todos os saberes que compõem a cultura brasileira, particularmente, daqueles que, literalmente, construíram este país com mãos de ferro e costas marcadas. 
Os professores neste processo não são os culpados pela disseminação de inverdades sobre os negros e negras escravizados e violentados, e, por muitas vezes, reproduzirem discursos (pré) conceituosos. Mas, fazendo jus ao seu ofício de ensinar e, muitas vezes, de educar, precisam atentar-se às artimanhas da língua, que por si é ideológica, para que não sejam também os responsáveis pela propagação do ódio, do racismo e da separação entre as pessoas dentro do próprio país e no mundo, pois como disse a mãe da menina do lápis de cor, em sua simplicidade: “papai do céu fez as pessoas assim para que elas pudessem entender que são as diferenças que tornam cada ser especial”. 


Referências

AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.

CARVALHO, Francione Oliveira. LIMA, Dulcilei da Conceição. Relações étnico-raciais: a presença negra no Brasil. São Paulo: Editora Mundo Mirim, 2012.

CELANI, Maria Antonieta Alba. Questões de ética na pesquisa em Linguística Aplicada. In: Linguagem & Ensino. Vol. 8, n. 1. Pelotas, 2005.

MARTINS, Silvana. A menina e o lápis de cor. In: Cadernos Negros – Contos afro-brasileiros. Vol. 38. São Paulo: Quilombhoje, 2015.

MUNANGA, Kabengele. Algumas considerações sobre “raça”, ação afirmativa e identidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos. In: Revista USP. N. 68. SP: USP, 2005-2006.

SANTOS, Arnaldo. A menina Vitória. In: SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: História e Antologia. São Paulo: Ática, 1985.

ZAU, Filipe. Definição de Assimilados. In: Jornal de Angola. 26 de abril de 2015. Disponível em: http://jornaldeangola.sapo.ao/opiniao/artigos/definicao_dos_assimiladosAcesso em: 2 de agosto de 2018.


Professor de Literatura Portuguesa da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES, membro do grupo permanente do PPGL - Estudos Literários, atual Coordenador Institucional PIBID-Capes. Em 2017 concluiu o primeiro Pós-doutorado em Estudos da Linguagem pela PUC-SP e, em 2019, concluiu o segundo pós-doutoramento em Estudos Literários pela UNIMONTES. Doutor e Mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo - USP. Possui Especialização em Teologia pela PUC-SP e em Língua Inglesa pela Universidade Estadual Paulista - UNESP. Atuou como professor universitário em diversas IES do Estado de São Paulo. Trabalhou com formação de professores na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo durante cinco anos. Também foi um dos responsáveis pela implantação do projeto Early Bird, ensino de Inglês nas séries iniciais, junto a mesma Secretaria de Educação. Recebeu o Título de Professor Paulista, na Câmara dos Vereadores de São Paulo, em 2017. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas de Língua Portuguesa, Ensino e Estudos da Linguagem, atuando, principalmente, com: Literaturas de Língua Portuguesa, Literatura Comparada, Teoria Literária; Eça de Queirós, Teolinda Gersão, Florbela Espanca (Currículo Lattes).