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quarta-feira, 5 de maio de 2021

Entrelinhas #2 - Quem tem medo do Comunismo?

Fonte: Boitempo 
A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade sua o que possuía. Tudo entre eles era comum. Com grande eficácia os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus e todos os fiéís gozavam de grande estima. Não havia necessitados entre eles. Os proprietários de campos ou casas vendiam tudo e iam depositar o preço da venda aos pés dos apóstolos. Repartia-se, então, a cada um segundo a sua necessidade. José, chamado pelos apóstolos de Barnabé, que significa filho da consolação, levita e natural de Chipre, possuía um terreno. Vendeu-o e foi depositar o dinheiro aos pés dos apóstolos. (Atos 4, 32-37).
Antes de iniciarmos um bate-papo sobre essa obra de Marx e Engels que apresento a vocês nessa belíssima edição comemorativa dos 100 anos da Revolução Russa (1917-2017), quero fazer uma pequena ressalva: embora esse pequeno artigo componha a série "Entrelinhas", que iniciamos há muito tempo, meu objetivo não é revelar ideias supostamente ocultas no texto, tampouco apresentar uma análise profunda da obra. Pretendo apenas partilhar algumas impressões da primeira leitura, das reflexões que me ocorreram a partir daí e do contato com a obra nessa edição.  
O livro que tenho em mãos reúne os seguintes textos: Manifesto Comunista; Prefácio (do Manifesto Comunista) à edição inglesa de 1888, por Friedrich Engels; Teses de Abril e Cartas de Longe, de Vladímir Ilitch Lênin; e introduções (ao manifesto e às teses) por Tariq Ali. Além da beleza da composição no que se refere aos elementos gráficos, estamos diante do trabalho rigoroso de uma editora que, em 20 anos de existência, conquistou 13 prêmios. Considerando a densidade dos textos, decidi abordar nesse momento apenas alguns aspectos do Manifesto Comunista. 
"UM ESPECTRO ronda a Europa - o espectro do comunismo". Com essa frase emblemática os autores principiam o texto. E eu a escolhi apara iniciar as reflexões que não se encerrarão aqui porque uma frase semelhante vem sendo proferida, há alguns anos, por pessoas que supostamente desejam "salvar" o Brasil de uma ameaça terrível: "Um espectro ronda o Brasil - o espectro do comunismo". Essa afirmação equivocada finalmente me trouxe até Marx e Engels, e é em razão dela que inicio essa jornada. 
No que se refere à fluidez de leitura, diria que pessoas que possuem certa familiaridade com textos filosóficos podem ter mais facilidade para compreendê-lo. Entretanto, o texto (e penso que os autores também) não exige do leitor uma iniciação à Filosofia para compreensão das ideias ali expostas: o raciocínio é explícito, preciso, objetivo. Ademais, as introduções e a boa vontade de procurar informações adicionais sobre o contexto em que o texto fora produzido e os filósofos que inspiraram os autores (Hegel, por exemplo) também podem colaborar para a compreensão do texto. 
Algumas críticas amplamente difundidas a respeito do comunismo - a falibilidade de sua aplicação em modelos de sociedade ou a equivocidade da previsão dos autores em relação à extinção do capitalismo ainda vigente - revelam o total desconhecimento da obra: afinal, o Manifesto não é um manual de instruções. Toda e qualquer revolução pressupõe a ação de inúmeros elementos. À guisa de ilustração, Lênin expõe nas Cartas de Longe (presentes nessa edição) de maneira didática os fatos que contribuíram para o sucesso da Revolução Russa. Quanto à "vigência" do capitalismo, diria que o tema merece um texto à parte. Uma análise mais aprofundada. Mais leituras. Deixo apenas uma provocação: permanece vigente a que preço e por quanto tempo?
Para encerrar a pequena reflexão de hoje, gostaria de tecer um breve comentário acerca da escolha do versículo bíblico utilizado como abertura dessa reflexão. Para os autores, a religião é um instrumento de dominação que deve ser superado. Talvez por isso a escolha do versículo bíblico incomode tanto os marxistas/marxianos mais ferrenhos, quanto os cristãos mais ortodoxos. Observando a atuação de alguns líderes religiosos, tenho que concordar com eles, mesmo sendo cristão católico. Arriscaria dizer que no século XXI Jesus Cristo não seria cristão, e muito provavelmente seria preso ou morto em nome de determinados "valores", "morais", "tradições". Observando a passagem bíblica destacada, percebo que o legado deixado por Jesus Cristo é a construção de uma sociedade onde a justiça social esteja plenamente efetivada, ideal igualmente perseguido por Marx e Engels. Observando o Brasil de hoje com todos os seus problemas sociais, políticos e econômicos, refaço a você a pergunta que nomeia esse texto: quem tem medo do comunismo?

Referências

Atos dos Apóstolos. Português. In: Bíblia sagrada. Trad. Mateus Hoepers (Novo Testamento). 50 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p. 1287-1324. 

MARX, K; ENGELS, F; LÊNIN, V. I. Manifesto comunista/Teses de abril. Textos introdutórios de Tariq Ali. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017. 


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Brincadeira literária*

As redes sociais são uma fábrica de distrações. A última que tive contato foi em forma de brincadeira literária, e consistia em publicar capas de livros de sua preferência. O número de indicações era limitado em sete e não poderia mencionar nada sobre os livros: apenas a imagem. Triste desafio para quem adora conversar sobre os livros, falar sobre as características das personagens e até mesmo dar e receber spoilers — mas somente em situações previamente autorizadas! Como poderia ficar sem falar das leituras que tanto gosto? Como conter toda a empolgação ao narrar minimamente a sinopse de um livro ou explicar que é impossível não torcer pela personagem de tal história? Como não compartilhar o brilho nos olhos ao lembrar de um clássico que me tocou a alma? De fato, seria um desafio. Mas os muros para um leitor nunca são tão altos e, seguindo os passos de Max, um judeu que ficou escondido no porão de uma Menina que roubava livros, vou dar um jeito de escrever o que me transborda o peito. Só não vou desenhar, porque essa habilidade eu não tenho!
A tarefa inicial: separar os livros! Tarefa fácil, se fosse uma lista de 100 livros em vez de 7. Quero todos, pode? A cada livro que eu pegava era um momento, um cheiro, uma pessoa, uma linha de ônibus, um contexto de vida, um dia frio, um bom lugar, um Djavan...Viajei. Mas, vamos aos livros.

O primeiro livro que habita todas as minhas listas é A Insustentável leveza do Ser, de Milan Kundera. Que delícia de nome, que delícia de história! Amo esse livro e não consigo explicar porquê o amo. Dramático, inquietante, estranho e filosófico. Esse livro me mostrou o quanto somos socialmente pequenos, mas imensos enquanto seres humanos. O quanto somos complexos e vastos. Foi indicação de uma amiga, empréstimo, logo em seguida comprei o meu. Não queria apenas possuir a história, queria abraçar o livro. Eu não conseguia dormir sem ler uma página que fosse. Esse livro me conduziu a profundas reflexões.

Segundo livro, A Mulher desiludida, de Simone de Beauvoir. Essa mulher dispensa apresentações e o livro é maravilhoso. Apesar das diferenças de época, continua atual. São três contos que narram os medos, a desesperança e a condição da mulher na sociedade. Quando li esse livro estava despedaçada. As mulheres dos contos também estavam, e de certa forma isso ajudou a me reconstruir. Eu me vi naqueles contos e arrisco a dizer que aquelas mulheres se viram em mim. É a magia da leitura.

Terceiro livro, Frankenstein, de Mary Shelley. Outra mulher que dispensa apresentações. Mary Shelley foi uma mulher à frente de seu tempo. A primeira edição de Frankenstein foi lançada em janeiro de 1818: são 200 anos e ainda nos fascina. Apaixonada pela criatura, sofri ao seu lado na maior parte do tempo. Apesar de ser considerado um monstro, ele é sensível e lida com as mais fundamentais questões humanas. Foi interessante acompanhar essa criatura que desperta para sua triste condição ao ser abandonada pelo seu criador,  e poder entender suas revoltadas, seus anseios, seus medos.

Quarto livro, As cem melhores crônicas brasileiras, vários autores. Esse aqui eu considero um golpe que estou dando, pois será cem em um! Temos Machado de Assis, Lima Barreto, Olavo Bilac, Rubem Braga, Vinícius de Moraes, Oswaldo de Andrade, Alcântara Machado, Rachel de Queiroz, Mario de Andrade, Humberto de Campos, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Millôr Fernandes e outros pesos-pesados da nossa literatura. As crônicas são apresentadas por anos, começando em 1850. Dessa forma, o leitor pode perceber as mudanças nas formas de narrativas, como também as mudanças dos contextos sociais. Ganhei de presente de um tio, também filósofo. Ler esse livro foi o mesmo que consumir pedaços de felicidades, ainda é uma doce recordação. Crônica sempre foi um dos meu estilos prediletos. Esse livro me acompanhou por muitos anos, ali na bolsa, guardadinho. Gostava de abri-lo e lê-lo ao acaso. A transição da escrita sempre me trouxe um certo conforto de que, apesar dos pesares, tudo passa.

Quinto livro, O Estrangeiro, de Albert Camus. Sempre que lembro desse livro paro por alguns segundos e sinto um estranhamento. O relato é em primeira pessoa, sobre a vida de M. Mersault: um homem que vive sua vida de forma livre, mas sem a consciência dessa liberdade. A personagem não se afeta com os acontecimentos em sua vida e não vive uma vida de acordo com as normas sociais, mas como deseja viver. Camus aborda a questão do significado que a sociedade tenta atribuir à existência. Quem nunca se perguntou: qual o sentido da vida? Será que tem? Li esse livro no período da faculdade. Devorei, me senti estranha. Voltei a ler alguns anos depois, senti novamente o estranhamento. Ouvi dizer que na terceira vez é melhor.

Sexto livro, A trilogia Jogos Vorazes, Em Chamas e A Esperança, de Suzanne Collins. Outro golpe à vista, três em um! Do grupo das literaturas populares. Caiu nas graças dos adolescentes, virou filme e fez um enorme sucesso. A história se passa em um futuro distópico onde os Estados Unidos da América, após total destruição, se transforma em 12 distritos e 1 capital. Para manter um determinado controle e ausência de rebeliões, a capital cria os Jogos Vorazes. Anualmente, duas pessoas de cada distrito são sorteadas para participar desse reality show mortal. Todos são levados até uma arena montada tematicamente e lutam até a morte. Esses jogos se assemelham aos combates entre os gladiadores romanos. Por que eu gosto disso? Com toda a certeza a autora bebeu de fontes preciosas como 1984, de George Orwell. Toda a narrativa levanta questões políticas de manipulação midiática, totalitarismo, opressão, discurso de ódio, consumismo, desigualdade social e fascismo. Além disso tudo, temos todo o drama da personagem que nos prende. Li os três livros seguidos. Ainda lembro da sensação de entrar nesse universo distópico e caótico do choro da personagem, dos barulhos das bombas, da raiva e de algumas alegrias, bem poucas alegrias.

Sétimo livro, Sociedade sem lei, pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie, de Rubens R. R. Casara. Com pesar, chego ao sétimo e último livro. Foi uma escolha difícil. Existem ótimos concorrentes para essa posição, mas julguei necessário escolher esse livro por conta do momento em que estamos vivendo. Também precisamos olhar e estudar sobre o nosso contexto atual. Casara é juiz de direito no Tribunal de Justiça no Rio de Janeiro, e em seu livro trata dos danos causados à sociedade pelo capitalismo e sistema neoliberal onde o homem não é mais a medida de todas as coisas e sim o dinheiro — o homem não é coisa alguma. Fala-nos de uma sociedade construída pela racionalidade neoliberal, que resulta em uma nova economia psíquica gerando, assim, pessoas sem limites e consequentemente uma sociedade sem limites. Leitura muito pertinente. Ainda não finalizei o livro, pois para compreender ou ampliar o conhecimento vou lendo em paralelo outros livros. Desse em específico fui para Psicologia das multidões, de Gustave Le Bon, e voltei a ler Educação após Auschwitz, de Adorno. E assim, sem perceber, dou mais um golpe e indico outros dois.

O mundo da leitura é isso: transitar por vários mundos, aprender e reaprender. A leitura é também a amplitude do sensorial: é sentir uma época, um desejo, um sentimento, um aroma. É ouvir uma melodia que não está presente nos seus ouvidos. Aprender novas línguas, novos povos. É o encontro de novos olhares. É na leitura que muitos podem viver em nós. Ler é a principal ferramenta para a nossa educação. Através da leitura amplio meu conhecimento, meu repertório. Passo a olhar o mundo como um sujeito crítico, posso transformá-lo.

Talvez seja assim só para mim e para você seja de outra forma. Qual a sua forma?

Pois bem. Essa lista não tem muita coerência: está tudo misturado! Tem um pouco de tudo que gosto, mas sei que desconheço um mundo de coisas que poderia vir a gostar. Uma vida não é suficiente para ler tudo que há para ser lido, mas uma certeza eu tenho: que sempre vou amar livros e sempre vou amar ler. Livro é tão bom que deveria ser declaração, tipo: eu te LIVRO!

*Texto publicado originalmente no site do Espaço Monica Aiub

sábado, 1 de agosto de 2020

Eterno retorno*

— O café está quase pronto, amor.
— Só mais cinco minutos…
Esse é o meu ritual matinal. Tentar, sem êxito algum, prolongar o tempo de vida útil dessa efêmera sensação de prazer. Manter-me distante do trabalho e das coisas que me afligem. “Ora, ora. Marx diria que o trabalho dignifica o homem. É por meio do trabalho que o homem transforma a natureza ao seu redor, forjando a si próprio”. Foda-se Marx. Prefiro a etimologia que qualifica o trabalho como um instrumento de tortura. Aliás, não é esse o mesmo Marx que afirma ser o trabalho o meio pelo qual o trabalhador vende sua força produtiva tornando-se uma mera engrenagem da máquina que produz lucro às custas de vidas humanas? É cedo demais para pensar nessas coisas, mas não consigo me desvencilhar.
— Está pronto, amor. Venha antes que esfrie!
— Tô indo!
Uma xícara de café frio é pior do que trabalhar. Café fresco, bem quente e doce é outra boa sensação da vida, daquelas que queremos preservar infinitamente. Porém, o café esfria, e a quantia que permanece na cafeteira italiana já não tem o mesmo sabor e temperatura da primeira dose. Contra minha vontade — vontade impotente — me encontro de novo com a fria e amarga realidade expressa naquele dito popular: “Tudo o que é bom dura pouco”. Talvez não seja sempre assim. Talvez exista um “quase” dentro desse “tudo”.
— Que dia é hoje, meu bem?
— Terça-feira. 12 de maio.
O tempo.
Os diversos modos de vê-lo passar me trazem à recordação — de maneira muito vaga — o que Nietzsche dissera acerca do eterno retorno. Já não sei se era esse o sentido que o filósofo quis imprimir à expressão, mas com certeza ela define meu esforço constante em afastar o que me aflige e…
— O café está quase pronto, amor.
— Só mais cinco minutos…
Esse é o meu ritual matinal. Tentar, sem êxito algum, prolongar o tempo de vida útil dessa efêmera sensação de prazer. 

*Texto publicado originalmente na seção Puxadinho do terceiro volume da Revista Habitat - Artefato Edições. 

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Diário de Simone*

Já não basta a dificuldade de acordar mulher todos os dias em nossa sociedade, agora temos de acordar mulher em meio a uma pandemia. Nossa rotina já é pesada, agora então, parece que Sísifo não está tão sozinho assim. Talvez você esteja me achando dramática — talvez eu seja mesmo — mas é bem provável que no fim dessas linhas você assuma que na verdade não iria querer trocar de pele comigo ou com qualquer outra mulher e, sendo bem sincera, a minha vida perto da vida de algumas mulheres que conheço é muito, muito tranquila e privilegiada.
“Bom dia” me diz o celular e o meu primeiro pensamento é: estou aqui de novo, vamos lá! Preciso de um café. Minha casa não se recuperou da noite passada, eu não me recuperei da noite passada. Pia tem louça, sofá tem roupa, livros no sofá, no rack, no chão, a gata... A gata precisa de comida, mas antes deixa eu ver meu filho. Saio da cama e acalmo meu coração vendo sua respiração, ele ainda dorme. Verifico sua temperatura, não parece doente e eu recebo como mágica um golpe de energia para descer as escadas. Ignore a bagunça: você não vai dar conta mesmo! Preciso passar o aspirador quando voltar. Tempo curto, muitas coisas, preciso me arrumar... O café! Mas, antes, a gata! Sentada no sofá verifico os noticiários. Coronavírus e suas derivações, em minha cabeça muitas reflexões: como vamos fazer com as favelas? Como estão meus alunos? Céus! E os moradores em situação de rua? Teve festa na rua de baixo. Tem muitos funcionários doentes no hospital — você não sabe ainda, trabalho em hospital — tem muita gente nas ruas preciso passar no mercado tenho dois atendimentos hoje preciso escrever aquele texto esqueci de responder a mensagem do Carlos preciso ler aquele texto do Adorno e aquele outro da Arendt como eu odeio esse presidente! Nossa... olha a hora! 
Saio de casa, queria mesmo era ficar. Minha irmã está de home office, minha mãe sempre trabalhou em casa, minha sobrinha e meu filho estão com os estudos a distância — ainda bem! Coração segue menos aflito.
— Tchau, Mãe!
— Tchau, Simone!
Sinto um pesar na sua despedida, é sempre assim. Ela teme e eu temo também, ambas fingimos que não. É próprio da mulher fingir que está tudo bem para poder continuar. Há de continuar, há de se manter. Muitas mulheres são assim, tivemos que nos construir dessa forma. Não é a primeira vez que saio de casa com medo, não é a primeira vez que minha mãe fica em casa com medo. Lidamos diariamente com ele, descansamos pouco do medo. As mulheres temem por suas vidas todos os dias e naturalizar isso também é um tipo de doença. 
A chegada ao hospital é tensa: você já entra pensando em como se proteger, mas como? Se falta EPI? Não tem para todos. Vamos pensar nos que precisam mais! Quem precisa mais? Quem lida com os pacientes, claro! Certo, mas a contaminação já é comunitária, o que significa que os profissionais podem passar uns para os outros... Vamos de “uni duni tê”?
Ao caminhar pelos corredores você se depara com diferentes profissionais, não é tão simples descobrir em qual setor aquele profissional trabalha ou de qual setor ele acabou de sair ou passar. O que ele estava fazendo antes de estar aqui? Pode estar infectado? O vírus não impôs apenas o distanciamento social, impôs uma sombra de desconfiança. Um vulto de doença em cada um que se aproxima. Nós mulheres também já estamos acostumadas com isso. Como você acha que é andar em uma rua escura e ouvir passos atrás de você ou quando você pede um carro por aplicativo? Até mesmo quando você vai conhecer alguém pela primeira vez, será que ele é um estuprador? O vulto da violência está em todos os homens até que se prove o contrário. Enfim, cruzo o primeiro corredor e nesse momento começo a sentir meu corpo um pouco mais rígido. Bem vinda, tensão! 
Ufa, cheguei segura ao meu setor... só que não! “Simone, tem aquele processo para entregar”. “Simone, fulano não veio”. “Simone, falta álcool”. “Simone, precisa ver a escala”. “O material para o paciente João não veio”. “O faturamento está atrasado”. "O Papa te ligou duas vezes”. “Cinderela! Cinderela! Cinderela...” Ops, volta! Desculpa, me empolguei. Lava as mãos primeiro e coloca sua máscara — é o que o bom senso diz e obedeço. Devido ao estado de pandemia adotamos algumas medidas protetivas, uma delas foi a redução do horário de trabalho. Lembro como se fosse ontem o apoio da chefia: “Até podemos reduzir, mas saiba que nada de errado pode acontecer, se não...". Nesses momentos, o acolhimento é o que conta, não acham? Afinal de contas, o que conta mesmo é a Mais-valia. A pandemia fez a gentileza de desvelar muitas coisas: ela desnudou tudo e todos, desde o sistema neoliberal e o quanto ele não se sustenta em toda sua mesquinharia até seu vizinho que limpou as prateleiras do supermercado. Não é mais necessário tanto esforço para ver quem as pessoas são. Foi mais ou menos como no período das eleições presidenciais, mas agora a rima é outra: vida X economia. Não, espere! A rima continua sendo a mesma: “Dinheiro: precisamos salvar. As vidas? Só se tempo sobrar!”
O setor em que trabalho é frequentado por muitos médicos. Vários desses profissionais estão bem cientes dos riscos que o novo vírus oferece, porém alguns estão confiantes que nada os atingirá e estão tão seguros que acreditam que também nada acontecerá com o restante da população, apesar de tratarem da população doente. Uma postura que me faz pensar como se deu esse processo um tanto alienante e alienador, tornando-os cada vez mais afastados de si mesmos e dos outros. Esses dias, trabalhando tranquilamente em minha sala, um dos residentes me procura para tirar uma dúvida, como faz de forma habitual. Se aproximou e muito de mim, o que não havia nenhuma necessidade, então pedi para que cumprisse o protocolo de distanciamento. Além de não ser atendida, fui surpreendida com um abraço forçado. Pois é! Ele me abraçou à força porque eu pedi para que ele respeitasse o protocolo que ele já deveria estar respeitando. A pandemia nos proporcionou uma nova modalidade de abuso: aquele que tenta te transmitir um vírus porque você reclamou do distanciamento — coitada da pandemia, não merece levar a culpa por estar de saia curta, nesse caso, por ele ser um abusador em potencial. Fui obrigada a empurrá-lo. Deveria ter feito mais, mas não fiz. Como a maioria dos homens, ele acredita que pode e está acostumado a poder e, pior, está acostumado a sair ileso de situações como essa porque nós mulheres, apesar de sabermos o que fazer na hora do abuso, de alguma forma, ficamos sem reação. Ele é médico, homem, classe média alta. Tudo isso conta muito no local onde trabalho. Qualquer reclamação que eu fizesse não daria em absolutamente em nada. Resolvi recolher minha cara e meu ódio do chão. Claro que eu sei que em uma escala de abusos esse não é dos piores, mas estamos falando aqui da violação da minha integridade, da minha vontade e do meu direito de não ser tocada — esse corpo aqui é meu, senhor! Hei! Hei! Hei! Do meu direito de ter minha saúde preservada. Mas, sabe o que é ainda pior? É termos uma escala para abusos. Pergunto-me se ele também abraça homens à força. Essa situação me fez lembrar do caso da médica Lorena Quaranta, que foi assassinada pelo enfermeiro e seu namorado Antonio De Pace. A justificativa de Antonio pela morte de Lorena foi ela ter passado o vírus covid-19 para ele. Ambos trabalhavam no mesmo hospital na Sicília, Itália. O mais suspeito é que os testes resultaram negativo para o vírus em ambos. Isso monstra como é fácil para os homens descontar sua raiva, seu descontentamento, sua ira sobre as mulheres. Como seu desiquilíbrio é direcionado para nós. Em contrapartida nós, mulheres, na grande maioria, adotamos uma postura de passividade frente aos homens. Somos culpadas pelas roupas que usamos, pelo horário em que saímos, se bebemos, se lutamos. A verdade é que nos culpam porque somos mulheres.
Hora de voltar pra casa, acabou... a metade do dia. 
Chegar em casa, deixar tudo no carro: tire os sapatos dentro do veículo, vá direto para a lavanderia, lave bem as mãos, tire as roupas e coloque-as em um saco, passe álcool em gel, vá direto para o chuveiro e não toque em nada! 
Em minha casa tenho 3 pessoas do grupo de risco: minha irmã finalizou recentemente o tratamento de câncer de mama, é hipertensa e diabética. Minha sobrinha é imunodeficiente, não produz anticorpos suficientes. Minha mãe tem 65 e possui habilidades de subir em telhados. Banho... Tento liberar a musculatura, começo a listar as tarefas mentalmente. Tensão, não foi embora ainda? 
Morta de fome. Vou comer qualquer coisa, bom senso não deixa. Precisamos reforçar a imunidade. Cozinha, lava, seca, guarda, limpa, aspira, respira, não pira. Tem cerveja? Não tem, só vinho. Serve? Não posso, vou atender — vocês não sabem, mas também sou terapeuta, segunda profissão. Para nós, mulheres, é muito comum o acúmulo de atividades. Historicamente muitas coisas são colocadas nos nossos ombros: casa, filhos, maridos, trabalhos — alguns até são remunerados, mal remunerados. Lembrei da Dona Cleonice, a empregada doméstica, uma das primeiras vítimas do Coronavírus no Rio de Janeiro. Contraiu o vírus na casa onde trabalhava de segunda a sexta. Sua empregadora retornou infectada da Itália e achou que era certo não dispensar seus empregados. Dona Cleonice era hipertensa e diabética. Seu nome não foi mencionado nas primeiras reportagens, era tratada apenas como "doméstica". Em uma sociedade que nos separa por classes e por objetos a serem usados, o que basta mesmo é saber quanto você vale. E uma empregada doméstica? Vale quanto? Seu nome era CLEONICE GONÇALVES, tinha 63 anos. 
Os atendimentos estão girando em torno da pandemia, todos estão girando em torno da pandemia. Ela nos consome e nós a consumimos, mas não tenho tempo de ser consumida: preciso verificar as lições do filho. 
— Como foi a aula, Murilo? 
— Bem, mãe! 
— Fez as atividades? 
— Sim mãe, você fez comigo. Esqueceu? 
— Sim filho, esqueci! 
Descansar. Vou ler, vou escrever aquele texto, vou planejar aquele grupo, responder aquela mensagem, quer um suco, filho? Vou ver um filme, nossa... olha a hora! 
“Bom dia”, me diz o celular e o meu primeiro pensamento é: estou aqui de novo, vamos lá! Preciso de um café.

*Texto publicado originalmente no site do Espaço Monica Aiub.

domingo, 14 de junho de 2020

Trabalho dos sonhos*

Que pesadelo mais sombrio! 
Estava num amplo galpão fabril, mal iluminado, repleto de camas hospitalares. As camas estavam ocupadas e dispostas em fileiras, como numa grande linha de produção. As pessoas que as ocupavam, aparentemente saudáveis, tinham conectados às suas cabeças eletrodos cujas extremidades encontravam-se conectadas a uma máquina semelhante a um computador. Máquinas, fios, pessoas e camas hospitalares repetiam-se sequencial e infinitamente compondo um cenário de ficção científica. Ao soar de um sinal, as luzes se acenderam. Paulatinamente, as pessoas que ocupavam as camas começaram a se levantar e a desconectar os fios que as prendiam às máquinas. 
— Quinze minutos para o café! 
Todos pareciam estar muito bem. Enquanto comiam, conversavam sobre os mais diversos assuntos: família, política, religião, economia, saúde, educação, a viagem das últimas férias... 
O sinal tocou novamente indicando o término do café. Todos retornaram aos seus lugares, dando continuidade às suas tarefas. Caminhando entre as camas observei que as telas das máquinas exibiam paisagens belíssimas — como se fosse possível apresentar em imagem a própria felicidade. Recordei-me de um texto de Bauman que denunciava o caráter parasitário do capitalismo, e então me dei conta de que todas aquelas pessoas estavam sonhando. Seus sonhos eram captados por meio dos eletrodos e transferidos para as máquinas. De lá seriam vendidos por um custo altíssimo a uma pequena parcela da sociedade que, diante de uma crise sanitária de proporções globais, se via incapaz de sonhar. Tentei chorar e não consegui. Gritei a plenos pulmões, mas meus lábios eram incapazes de projetar qualquer som. 
— Álvaro! Álvaro! 
— O que foi? 
— Você estava longe, meu amigo. A pausa acabou. Temos ainda muitos sonhos a produzir. Volte ao trabalho! 
Liguei a máquina. Reconectei os eletrodos em minha cabeça. Deitei na cama...

*Texto publicado originalmente no segundo volume da Revista Habitat - Artefato Edições

segunda-feira, 1 de junho de 2020

O que podemos aprender com Heráclito de Éfeso

Filósofo pré-socrático, viveu entre 540 e 480 a.C. 
Como os demais filósofos do mesmo período, Heráclito estava interessado em compreender a origem de todas as coisas e a dinâmica da natureza a partir dela mesma, sem precisar recorrer aos antigos mitos ancestrais. 
Para Heráclito, as constantes transformações que ocorrem no mundo natural são a sua característica mais fundamental. Para ele “Tudo Flui” e “Nada é permanente, exceto a mudança”, tanto que é impossível “banhar-se duas vezes no mesmo rio” pois, quando mergulho no rio pela segunda vez, não sou mais a mesma pessoa e nem o rio o mesmo rio. Heráclito também aponta que o mundo está repleto de contradições ou pares de opostos. Se jamais ficássemos doentes, não saberíamos o sentido de gozar de boa saúde. Se jamais houvesse guerra, nunca daríamos valor a paz. “Deus é dia-noite, inverno-verão, guerra-paz”. Esse Deus por ele mencionado é uma razão universal, é essa natureza cheia de contradições. O termo utilizado por ele constantemente é logos, que quer dizer “razão”. Parece um tanto pessimista a filosofia de Heráclito quando observamos sua fugacidade, mas acredito ser muito mais prejudicial não compreendermos as transformações e as mudanças a que estamos sujeitos enquanto seres viventes nesse mundo em constante movimentação. 
Essa é uma síntese da filosofia de Heráclito. Se você curtiu, pesquise mais sobre o filósofo. No fim do texto vou deixar indicação de leitura. 
Certo. Vamos deixar isso mais legal e usar o conceito apresentado para refletirmos sobre nossas vidas. 
Estamos acostumados a lidar com a vida como se algumas coisas fossem estáticas ou como se pudéssemos controlar as mudanças que nela ocorrem. É compreensível: afinal de contas fazemos planos, tomamos decisões a médio e a longo prazos, precisamos de uma certa estabilidade. Parece ser impossível manipular tanta “fluidez” assim. A ideia de mudança é muito mais aceitável quando a vinculamos a algo que aceitamos ou queremos que mude. No entanto, sempre existe uma parte de nossas vidas sobre a qual não pensamos, não aceitamos ou não queremos que se altere de alguma forma, principalmente de formas inesperadas. Esquecemos que o mundo possui uma outra dinâmica, as coisas acontecem e nos atravessam sem a nossa permissão e quando percebemos tudo mudou. Fazendo uso do conceito apresentado por Heráclito, precisamos considerar a natureza em seu próprio devir (tornar-se, vir-a- ser) que não nos consulta previamente. O logos da natureza ou do mundo que muitas vezes desconhecemos não está em nosso domínio. Quando a mudança se apresenta precisamos, de alguma forma, lidar com ela. As perguntas são: como você lida com as transformações do mundo? Para você é tranquilo? Consegue identificar suas formas de lidar com as mudanças? Você é mais flexível ou menos flexível para mudanças? 
Não tem certo, nem errado: há apenas as suas reflexões acerca do seu modo de ser e de perceber as transformações do mundo que lhe cerca. 

Indicação de leitura: Os Pré-Socráticos - Vida e Obra. Coleção "Os Pensadores". São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Linhas de fuga*

Linhas de fuga. 
É isso. 
Linhas de fuga. 
Não sei ao certo de que modo Gilles Deleuze e Félix Guattari desenvolveram esse conceito em suas obras, mas eles não se importariam em me emprestar por instantes ao menos alguns matizes dessa concepção. Eles nunca pretenderam estabelecer uma escola de pensamento que viesse a lhes interpretar, post mortem, de maneira exegética. Creio até que, se estivessem vivos, eles me diriam: 
“ — De que maneira esse conceito funciona em seu mecanismo? Quais os fluxos ou cortes de fluxos podem ser estabelecidos entre vocês?”. Eles fariam essas perguntas por uma razão muito simples: somos máquinas. Máquinas desejantes! Maquinar é a atividade própria da máquina. É possível maquinar linhas de fuga diversas: linhas que vão de si para si, de si para o outro. De si para o mundo. Linhas de fuga revolucionárias. Essa é uma atividade que requer doses de sobriedade e embriaguez. Sobriedade para traçar estratégias, estabelecer distanciamentos e contiguidades, tangenciar curvas, dobrar obstáculos. Embriaguez para caminhar enquanto muitos correm, para escutar enquanto muitos falam, para silenciar enquanto muitos gritam. Uma vez em movimento, Deleuze e Guattari nos diriam que essas linhas de fuga podem nos sujeitar a acontecimentos cuja experiência dependerá de uma série de agenciamentos: você aqui, comigo, nesse texto. É um acontecimento das linhas de fuga que maquinei. E talvez das suas também. E que só foi possível em função de uma série de agenciamentos. Ou circunstâncias. Poderia não ter acontecido, mas aconteceu. Já que está por aqui, proveito para perguntar: quais são suas linhas de fuga?

*Texto publicado originalmente no primeiro volume da Revista Habitat - Artefato Edições.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Sobre a saudade

Saudade é uma das palavras mais utilizadas na poesia, principalmente nas poesias de amor. Deve ser, também, a mais usada na música popular (sertanejo talvez?). A saudade descreve sentimentos de falta, perda, distância, amor, amores... A palavra saudade é uma derivação de solitatem, do bom e velho Latim, que quer dizer solidão. Não sei vocês, mas eu nunca senti uma saudade compartilhada, foi sempre só minha e na solidão da minha alma. Cada um com a sua, não é não?! Considerada exclusividade da Língua Portuguesa: quimera! É patrimônio da humanidade. Graças a ela temos ótimas produções literárias. Acho a saudade muito bonita na poesia, mas na vida real ela queima.
Costumo dizer que saudade é uma coisa sem retorno, sem rótulo de bom ou ruim. Apenas sem retorno. Saudade é o crédito já utilizado, o bônus aproveitado, o benefício gasto. É o vivido transformado em passado. Já ouvi sobre a saudade do que não se viveu. Ainda assim, é o não vivido, a oportunidade não agarrada, mas passada.
A saudade é um deslocamento temporal: te leva para o passado ou faz o passado passar por você, e normalmente isso acontece naquele dia comum em que você está na fila do supermercado ou esperando o farol lhe conceder a passagem. Simplesmente acomodada na minha vidinha e, de um minuto para outro, a saudade vem e me esmaga com qualquer coisa que vejo, ouço ou cheiro e se coloca à minha frente. Fico em suas mãos. É uma das melhores formas de perceber o tempo, perceber tudo que não volta, que não se toca. Saudade é o bafo quente da vida, são os nossos pedaços espalhados pelo tempo.
A saudade não solicita permissão: ela atravessa e pronto. Tem uma música do Jorge Vercillo que diz assim:

Saudade tem limite, eu pensei
E quando creio que ela acabou
me leva mais além 

E ela leva... Te leva para dentro do carro em uma deliciosa conversa de pai e filha regada a Belchior, ou te desloca para o quarto onde éramos três adolescentes cheios de sonhos gastando Renato Russo. Te joga em uma caminhada pela orla da praia onde a brisa e o cheiro do mar é revigorante, ou te faz pousar na cozinha da Nona salivando à espera da comida. A saudade te coloca de frente com a ausência, remonta cenários, sons, movimentos... Ela te sacode. Nos faz rever aqueles que perdemos para a morte e aqueles que perdemos para a vida. A saudade é física, subjetiva e malcriada. Entra pelos pulmões e estaciona entre o estômago e o coração: falta ar, é quase choro, é quase riso, às vezes é quase dança. Só vai embora quando quer, somos por ela governados. Saudade é tirana, não declina frente às nossas súplicas.
Saudade é o desejo do corpo e da alma de reviver o momento e é a revolta de não ser capaz. Quando ela chega sinto vontade de correr, de agarrar, mas no minuto seguinte sinto minhas pernas adormecerem frente a impotência, sinto o desejo escorrer pela alma implorando mais uma vez. O tempo vem, me toca e me (re)coloca no lugar do efêmero, do não-mais, pois nem toda saudade se mata. Somos feitos de carne, osso e saudade.


terça-feira, 6 de novembro de 2018

Por trás do som #1 - Metrô Linha 743

Metrô linha 743 – Raul Seixas – 1984




Antes de falarmos sobre tudo o que o “Raulzito” conseguiu criticar em uma música que à primeira vista soa inocente ou apenas mais uma daquelas loucuras habituais da década de 1980, vamos falar um pouco sobre quem era Raul e o que estava rolando no Brasil no momento em que esta canção veio a público em seu décimo segundo álbum cujo título é homônimo à música. 
Raul Seixas foi um dos grandes ícones do Rock n’ Roll brasileiro. Nascido em Salvador, Bahia, no ano de 1945, Raulzito, como era chamado, cresceu em uma família de boas condições financeiras, tendo acesso a uma boa educação e também aos muitos livros da biblioteca particular de seu pai, onde passou a maior parte da sua infância, segundo ele mesmo. 
Sua infância e juventude voltada aos livros o tornaram um homem com interesse em muitas áreas de conhecimentos como a filosofia, a física, a metafísica, a teologia, a astronomia e muito mais. 
No ano de 1984 o Brasil já havia vivido quase todos os anos de ditadura civil-militar que pôde. Esta, que viria a findar em 1985, teve como suas maiores características a caça e censura aos artistas, intelectuais e, sobretudo, militantes ligados a organizações de esquerda. O Estado Militar, por meio de Atos Institucionais, censurou praticamente toda forma de levar notícias reais ao povo. Todo veículo de mídia era submetido a uma avaliação crítica feita por um militar encarregado. 
Foi no meio disso tudo que surgiu uma música difícil demais para ser censurada, divertida demais para não ser ouvida nas rádios e crítica demais para ser esquecida: “Metrô Linha 743”. 
Vamos à letra:
Ele ia andando pela rua meio apressadoEle sabia que tava sendo vigiadoCheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Este primeiro trecho é talvez o mais importante em termos de críticas ao que acontecia no país. O eu lírico da canção é um homem adulto que parece estar um tanto alheio às coisas que estavam acontecendo naquele período e, ao encontrar alguém que estava mais bem informado, começa a ouvir do seu interlocutor, por entrelinhas, os perigos que ambos corriam pelo simples fato de estarem pensando ou conversando um perto do outro.
Ele disse: eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Aqui temos uma das grandes pistas do que está acontecendo no cenário da canção. O homem que estava fumando seu cigarro sente medo de que outra pessoa pare e fume perto dele pois, nos tempos da ditadura, além da constante sensação de estar sendo vigiado pelas polícias políticas, qualquer tipo de reunião poderia soar como um murmurinho a fim de dar inicio a um movimento revolucionário.
Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Nesta parte temos mais uma grande crítica: um Estado repressor e autocrático não confia em intelectuais e jornalistas comprometidos com a verdade. Quando o interlocutor diz que o prato mais caro é “o que se come cabeça de gente que pensa” ele está pura e simplesmente falando que para o governo, intelectuais e universitários eram os mais procurados por conta de sua capacidade de não cair nas propagandas que visavam dar uma falsa sensação de que tudo estaria muito bem no país. Assim como o trecho “Perdi minha pena nem sei qual foi o mês” refere-se ao fato de que todos que exerciam o ofício da escrita, em algum momento, sem aviso ou sem motivo claro eram vedados de publicar em jornais e revistas, desta forma, tendo que procurar outros empregos para sobreviver. “Perder a pena” é uma maneira figurada de dizer que perdeu o direito de escrever já que a pena de nanquim é um dos símbolos da escrita.
O homem apressado me deixou e saiu voandoAí eu me encostei num poste e fiquei fumandoTrês outros chegaram com pistolas na mãoUm gritou: mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos córneosEu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?Se é documento eu tenho aquiOutro disse: não interessa, pouco importa, fique aíEu quero é saber o que você estava pensandoEu avalio o preço me baseando no nível mentalQue você anda por aí usandoE aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custandoMinha cabeça caída, solta no chãoEu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vezMetrô linha 743
A partir desta estrofe, a canção começa a tomar um caminho mais ilustrativo, onde três homens armados (provavelmente militares pois, ao ser abordado, o sujeito pergunta se é pra entregar seus documentos) abordam o sujeito e, diferentemente do esperado, não querem ver seus documentos ou saber se ele era ou não uma ameaça ao Estado: estes homens querem saber sobre o quê o personagem estava pensando para poder fazer uma análise do valor que se poderia cobrar por sua cabeça, pois como dito “Eu avalio o preço me baseando no nível mental que você anda por aí usando”. Logo após, o sujeito já pode ver seu corpo sem sua cabeça. Ele perde sua cabeça (por cabeça, podemos tomar outros significados como senso crítico, capacidade de duvidar, intelecto) sem sequer perceber o momento em que isso ocorre, sem ser investigado, sem ter cometido crime algum. Aí encontramos a grandiosa crítica sobre a arbitrariedade das prisões no período militar.
Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinhaE eu era agora um cérebro, um cérebro vivo a vinagreteMeu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tieteFui posto à mesa com mais doisE eram três pratos raros, e foi o maitre que pôsSenti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhadoMeu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou griladoQuem será este desgraçado dono desta zorra toda?Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibaisMas o negócio aqui tá muito bandeiraDá bandeira demais meu DeusCuidado brother, cuidado sábio senhorÉ um conselho sério pra vocêsEu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mêsAh! Metrô linha 743
E, por fim, a estrofe mais pesada apesar de mais metafórica. No início da estrofe o personagem narra sua “cabeça oca” sendo jogada no lixo da cozinha e passando a viver como um cérebro vivo a vinagrete. Ora, para bom entendedor meia palavra basta. Este trecho fala especificamente sobre os cenários de tortura onde o sujeito da música, mesmo quase sem saber o que se passava no país, é confundido com líderes de esquerda e por isso é conduzido por algum militar de escalão médio (na pessoa do Maître) à sala onde seria interrogado. Ao chegar lá ele se vê ao lado de mais dois outros sujeitos, porém estes dois pareciam ser “pratos raros”, ou seja, pessoas muito procuradas pelas forças militares. Seguindo ele diz “Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado” o que denota toda a dor de estar sendo fortemente torturado sem ao menos saber exatamente porque aquilo estava acontecendo. 
Fechando o trecho, o personagem da música deixa um recado póstumo: “cuidado brother, cuidado sábio senhor...” e “eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês”. Aqui temos o recado de que já não havia mais certo ou errado, culpado ou inocente: qualquer cidadão, mesmo o mais desinformado, estava à mercê dos caçadores canibais que, com gosto, devoravam cabeças sem medir a gravidade de seus atos.
Chegamos até aqui e você deve estar se perguntando: “Ora, mas o que isso tem a ver com esse tal Metrô Linha 743?”. Muito simples! Perceba que o nome do Metrô surge de repente e fora de contexto ao final de cada estrofe; e que cada estrofe é uma espécie de denúncia a algum tipo de atrocidade causada pelo governo da época. Esta é a cereja do bolo desta grande lera. O Metrô que surge ao final de cada relato é uma alusão ao que estava acontecendo com os jornais e rádios da época. Com a censura imposta e o controle do governo sobre os veículos de mídia, nada do que acontecia podia ser noticiado, sequer comentado pelas ruas. Para, então, que os jornais tivessem o que falar e para que os brasileiros de regiões mais afastadas vivessem com sensação de que as coisas estavam todas funcionando muito bem, as notícias a que os cidadãos tinham acesso eram sempre relacionadas a alguma obra de Metrô, Trem ou Estrada que estavam sendo construídos ou reformadas para maquiar o desgoverno que se fazia.
Esta canção é uma obra prima do livre pensamento e da resistência contra toda forma de censura e de opressão. É um alerta para que nós, hoje, entendamos que se deixarmos que isso tudo aconteça mais uma vez, seja por apoiar ou por não entender exatamente o que está em curso, em algum momento qualquer um pode se tornar uma vítima pelo simples fato de estar pensando.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

Poema para o Século XXI

Temos visto crescer ultimamente
o egoísmo no coração de muita gente.
Troca-se o TODOS pelo EU.
Troca-se o NOSSO pelo MEU.
O resultado catastrófico dessa operação
se estampa na violência, na intolerância, na exclusão.

Preconceito. Xenofobia.
Racismo. Homofobia. Misoginia.
Frutos de uma árvore que outrora incineramos,
sementes que ameaçam o futuro que esperamos.

É preciso relembrar que a convivência
é parte integrante de nossa essência.
Acolher o outro, respeitar a diversidade
é mais do que mero exercício de alteridade:
é sinal de HUMANIDADE!

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Uma folha em branco


É curioso notar a potência - a tamanha potência - de um objeto tão simples e tão presente em nosso cotidiano: uma folha em branco. Em outros contextos ela teria virado arte (avião, origami, bola de papel, pintura), rascunho (de desenho, de música, de carta, de texto, de vida). No entanto, agora ela me interpela, me coloca contra a parede: "Cá estou diante de você. E agora, o que você vai fazer?". Estou mudo. Não sei o que dizer. Pensei em escrever sobre alguma corrente filosófica, sobre os grandes temas da educação. Até arrisquei um ensaio sobre a potência de objetos simples enquanto forças mobilizadoras do pensamento. E então? Nada. Talvez a liberdade de escolhas de temas diante de uma folha limpa e não utilizada seja a mais perfeita alegoria da vida. Um perfeito paradoxo: a liberdade que aprisiona. Que não me permite fugir de mim. Que me obriga a dizer quem sou. Que me permite me tornar o que sou. Isso me faz recordar Sartre, Nietzsche... Filosofia. Infelizmente já não há mais tempo. A folha já não está em branco.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Filosofia de si: olhar o passado, vislumbrar o futuro

Imagino que, a essa altura, você já pensava em desistir de nós. Talvez estivesse se perguntando o motivo de tanta demora, a razão que explicaria um recesso tão longo... Talvez estivesse aflito, insone, lutando bravamente contra a ansiedade compulsiva. Aposto que chegou a redigir diversas versões de e-mails que seriam encaminhados à Mônica, ao Gabriel, a mim, ao ministro da cultura, ao Papa, exigindo o retorno de tão belas e provocadoras reflexões. Ou talvez - alternativa mais bem provável - nem sentiu nossa falta e tudo o que eu disse não passa de um mero devaneio cego de minha vaidade estrábica.  
Enfim... Com saudades ou sem saudades, há exatos quatro anos  - dia 26 de março - nascia "O Saber Inútil". Criado inicialmente com o propósito de ser um recurso para as aulas de Filosofia que lecionava na rede pública, através do qual eu disponibilizaria aos estudantes uma gama de materiais diversos, o blog se converteu num espaço onde passei a despejar, em palavras, o que sentia e pensava a respeito de minhas experiências particulares com a vida, o mundo, as pessoas, a Filosofia.
Em 2016 ele ganhou um novo visual e passou a contar com as contribuições de minha grande amiga Mônica Soares. No ano seguinte, passamos a contar também com as contribuições de outro grande amigo, Gabriel Paixão, e com contribuições esporádicas de leitores, filósofos, poetas, artistas... Pessoas incríveis que não tinham espaço para divulgar seus talentos e ideias. Em quatro anos: publicamos 45 textos, atingindo a marca de 4.595 visualizações em 10 países diferentes!
Em meio a tantas transformações, o nome permanece. Ah, o nome... Nosso rosto, nossa identidade! Resistência e re-existência! Uma crítica à concepção utilitarista da vida, segundo a qual tudo o que é útil deve ter uma aplicabilidade prática. O fato é que as melhores coisas da vida - o amor, a felicidade, a filosofia, a arte, as pessoas... Nada disso tem uma aplicabilidade prática, uma razão teleológica externa. Nada disso é útil ao mercado - ou não deveria ser. O que há de melhor na vida tem um fim em si mesmo. E é justamente a isso que o NOSSO blog se propõe.

Que 2018 seja fecundo de ideias e boas vibrações! 

sábado, 16 de dezembro de 2017

Entre a leitura dos clássicos e o filosofar: dos prazeres da boa vida


Assim como o nome próprio deve soar, a cada indivíduo, como uma lei particular - como seu próprio destino - o título dado a um texto não deve ter uma função muito diferente disto. Atrevo-me aqui a tratar de um assunto que, à primeira vista, pode parecer como um desafio sem precedentes: convencer os jovens do valor de uma boa leitura e sua “filosofada” subsequente. Se a propaganda é a alma do negócio, não sem razão me propus a qualificar essas duas atividades como os “prazeres da boa vida”.
Se vamos falar de leitura de obras clásicas, e se vamos falar de Filosofia, quero recordar e lhes contar de que maneira descobri tais tesouros. Comecei a ler quando era muito novo. E quando vi, já estava a escrever também. Amo poesia. Lembro que mal compreendia o que Manoel Bandeira queria dizer com muitas de suas poesias, mas aquilo me fascinava. Penso que já nascia em mim, ali, a compreensão de “obra clássica” que carrego comigo até hoje: aquela obra que, apesar do tempo histórico e das circunstâncias em que foram escritas, sempre têm algo a nos dizer. E talvez por isso eu caminhava por aí com o “Estrela da vida inteira” embaixo do braço. 
Já no início de minha vida adulta vim conhecer a Filosofia: foi quando resolvi ingressar na faculdade mesmo sem saber ao certo o que ela era e para quê servia. E diante das múltiplas definições e interpretações que aprendi ao longo do curso e desses anos como professor da disciplina, digo sem nenhum pudor que ainda hoje não sei ao certo do que se trata. E isso é maravilhoso! Depois que conheci a Filosofia, nunca mais fui o mesmo. Nunca mais vi as coisas da mesma maneira. Em síntese, eu diria que abri mão de poucas certezas para abraçar a multiplicidade de possibilidades. Aprendi que nem sempre a resposta é tão importante quanto a gente imagina: às vezes só é preciso saber fazer boas perguntas. 
Não chegamos ao final da conversa - e penso mesmo que essa conversa nunca deva terminar - mas já podemos extrair algumas conclusões simples dessas duas historinhas que, embora pareçam pertencer à Carochinha, dizem muito do que sou hoje. E é ao desfrute do que venho chamando de “prazeres da boa vida” a que devo muito do que sou hoje. O prazer da leitura de uma obra clássica - que pode ser tanto um clássico “canônico”, quanto um clásico que seja só seu, não tem problema! - possibilita muito mais do que uma simples distração; possibilita muito mais do que um simples desbravar de um mundo novo; possibilita muito mais do que o simples exercício da imaginação. A leitura de um clássico nos possibilita o exercício do filosofar; nos possibilita o encontro com a multiplicidade; nos possibilita o encontro e o reencontro com as grandes e insolúveis questões que são, a um tempo, nossas, do autor e da humanidade. Em síntese, a leitura de um clássico viabiliza nossa própria trasncendência: um verdadeiro privilégio. E é incrível e maravilhoso que tais nobres prazeres estejam extremamente à disposição de quem quer que seja. 
E então? Uma pontinha de curiosidade? Quer ver o mundo de uma maneira totalmente diferente? Afim de saber de que maneira se realiza este exercício de transcendência? Leia!

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Solidão


Vamos falar de solidão. Quem nunca sentiu esse troço esquisito, não é não? E quem nunca tentou afastar isso? Não saberia dizer de anos atrás, mas a percepção que tenho é que nessa nossa época rotulamos a solidão como algo extremamente negativo e buscamos a todo custo não sermos seres solitários. Nunca sentimos tanta inveja dos nossos coleguinhas e suas vidas cheias de companhia e felicidade. Todos possuem uma vida de comerciais de margarina. Ninguém arrota, nem tem dor de barriga, não passam nervoso, não ficam fedidos, professam um amor verdadeiro e recíproco, os pássaros cantam quando eles passam, não há céu nublado nem tormentas. Ninguém atrasa uma conta, não brigam com o filho nem torcem o pé.
Estamos falando aqui de existência que nem sempre é acompanhada, feliz e satisfeita. Bom nunca é acompanhada. A verdade é que somos seres solitários e individuais. O que você sente só você sente, mesmo que seja similar ao sentir do outro. Eu, de tão existencialista que sou, vou ao chão um montão de vezes. Qual foi o lixo que me esqueci de jogar fora? Quando estou uma porcaria não consigo escrever, meu filho não me suporta e minhas amigas... bom, minhas amigas continuam porque são as melhores. Entro na minha caverna e espero, sempre passa. Percebe que vem de dentro e não do mundo? Se encontre, leia alguns livros, ouça Belchior!
A solidão, de tão mal interpretada, virou fraqueza. Tudo isso só porque ela toca o terror na sua vida e te coloca de frente com você mesmo. Não seja intolerante com a solidão, ela não é e nunca será uma inimiga. Sei que existem algumas solidões que machucam pra burro e tiram o significado de muita coisa, mas se isso não for uma patologia, dê as mãos para ela e se descubra. Aos onze anos eu descobri a solidão compartilhada, quando sentar-se a mesa para dividir as refeições já não fazia mais sentido. Essa era uma solidão específica. Arrisco-me a dizer que algumas solidões têm nome, sobrenome e CPF.  Aos vinte e cinco anos descobri a solidão de mim mesma, quando já não me amava mais, não me pertencia e o cinza estava na alma. Com muita droga na cabeça (lícitas crianças) e muito blá, blá, blá (terapia crianças) eu me vi e renasci.  O que não tem remédio... A gente aceita ou supera ou modifica!
Aprendemos um montão de coisas com isso inclusive a força de continuar.  Então se você está pensando em desistir, repense e volte a repensar. Vale a pena atravessar todo esse lodo. Todo mundo tem uma historinha pra contar e acreditem, elas não são tão belas como imaginamos. Inferno existe de monte por aí e ele está dentro de nós. A notícia boa é que o paraíso também existe: encontre-o.

domingo, 27 de agosto de 2017

Requiesce in pace

O meu pai morreu! Essa é a primeira vez que consigo formar e verbalizar essa frase. Após dois anos consigo pensar nisso e não questionar minha realidade, não sentir náusea, não ouvir em minha mente os bips dos aparelhos. Foram dois anos não querendo verbalizar um fato. Muitas vezes eu fugi para não o pronunciar, outras vezes a minha expressão era suficiente para que o outro entendesse (obrigada àqueles que entenderam). Foram sete dias na UTI, dias em que tive a absoluta certeza que passariam, mas não que seriam os últimos. Acreditei tanto na melhora do meu pai que quando ouvia das pessoas para “me preparar” sentia raiva. Eu não me preparei, até porque acho que ninguém consegue de fato se preparar para isso. Até mesmo após o fatídico telefonema eu me mantive em certo transe, que só tenho consciência dele agora.
Meu pai foi meu e de mais duas lindas mulheres que até hoje não sei bem como passaram por esse processo. Fui egoísta não por falta de amor, mas por falta de estrutura. Não sabia nem como eu estava passando por isso. Tem coisas que não sei falar, sei apenas escrever. Lidar com a morte não é como sentar numa mesa e discutir uma relação com os pensamentos e sentimentos bem definidos e estruturados. 
Meu pai foi um homem que viveu como queria. Como todos, construiu seu caminho, teve seus desejos, sonhos, erros e acertos. Foi um existencialista mesmo sem se dar conta de que o era. Não esteve presente fisicamente em várias e diferentes épocas da minha vida, mas eu sabia que ele estava lá - e o saber faz toda a diferença. 
Com ele meu papel de filha também morreu. Apesar de ainda ser filha de minha mãe, a filha do pai se foi. Precisei rever esse papel existencial. Não há como substituir, tem que deixar ir e aceitar. Em um enterro você não sepulta apenas um corpo, mas vai junto uma infinidade de coisas.
Com a morte do meu pai eu aprendi o que é o arrependimento, aquele verdadeiro, não o que você sente por ter comido além da conta. É um real nó no coração. Vi desaparecer um complexo, sendo eu a Electra, e com ele uma grande representatividade. O que ele era para mim, era somente para mim e entendo que muitas pessoas não entendem isso. Eu respeito. Acontece que o mundo é de um jeito diferente para cada um e nesse mundo cabe um zilhão de sentimentos. 
Eu não disse para o meu pai tudo o que queria. Não lavei toda nossa roupa suja, não chorei o quanto eu queria, não o abracei o quanto nós dois merecíamos. Eu não cumpri algumas promessas, mesmo sabendo que ele não iria me cobrar. Eu não as cumpri e isso tem seu peso. Me dei conta que não pensei no tempo e não vi que ele passava. Percebi que dei valor para coisas que eu poderia ter deixado pra lá e não vou poder dividir tudo isso com ele. Com um bocado de ideias tortas e um muro para ultrapassar, entendi que eu precisava me perdoar. E quando finalmente me perdoei, consegui perdoá-lo.  
Com a morte do meu pai eu aprendi que viver é preciso, obrigatório e necessário; que quero ser eu mais do que nunca. Entendi que algumas coisas são como são, outras nunca serão o que queremos e que se quisermos podemos mudar algumas tantas outras. Aprendi que as pessoas são apenas pessoas e que, como eu, estão tentando viver, sobreviver, atravessar, superar e não enlouquecer. Estamos todos atravessando o mesmo oceano a nado livre. 
Com a morte do meu pai eu passei a olhar diferentemente para minha mãe e para aqueles que tanto amo, olhei diferentemente para mim e para aqueles que o amavam e me senti grata pela existência dessas pessoas. Aprendi a viver melhor e não vou tentar não cometer erros, pois seria estúpido, hipócrita, desumano. Aprendi que os pais ensinam mesmo quando morrem.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Primeiras Palavras

Parabéns por postar,
Página perfeita...
...pra problematizar!
Prossegui pensando por perseguir palavras
Praticando poesias
Penalizando poderes.
Poderia pôr pra papo
Problemas pessoais
- Persisto -
Podemos progredir por paz!
Perseguem putas pois possuem-se;
Perseguem pretos porque pobres;
Perseguem pardos, peruanos, paraenses
Pros políticos? Privilégios...
Pesquisa publicada por periódico propõe
políticas paliativas. Piada!
Produtora produz película para
popularizar presidente. Putaria!
População preenche pista principal
pedindo por providências. "Protesto pacífico"!
Pediram-me pra parar
Pediram-me por profecias
Pedro??? Por favor, Paulo!
Parei pra pedir pinga pro prefeito
Projetos para primeiro pleito
Pedi por país perfeito!
Pareço pedra
Prossigo persistente
Pois possuo pistola
Poucas palavras por pente
Peço por pouco
Paz, prosperidade, perdão
Permaneço "Perdido Por Pensar"

Prazer, Paixão.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Na quitanda da boa vizinhança...


A: - Bom dia, meu senhor!

B: - Bom dia, meu jovem! O que você vai levar hoje?

A: - Procuro um pacote bem grande, repleto de respeito mútuo, para sair distribuindo por aí. Quanto custa?

B: - Ah, meu jovem. Isso já não temos por aqui há anos...! Infelizmente. Mas temos porções de inveja, egoísmo, corrupção... Essas coisas que estão na moda agora. Se você levar o combo inveja + egoísmo te faço um precinho especial: custa apenas o incômodo alheio!

A: - Hmmm... Acho que vou levar. E vou pagar a vista!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Todos os caminhos me levam a...


Ainda acho engraçado como as coisas surgem em minha mente em momentos inoportunos. Comparo isso a um parto natural onde a mulher, apesar de saber da gravidez e esperar pelo gerado, se assusta quando ele inicia sua jornada de destruição e construção. Fico grávida mentalmente e nunca sei exatamente como será o parto nem o que nascerá. Seria bem melhor eu estar dormindo a essa hora, mas não. Estou sentada em minha sala assistindo a um programa político e nem sei como esse parto iniciou. Mas, já que aconteceu, estou aqui, mais uma vez a escrever.
O programa mostrou o funeral de um exilado político e após o relato de seu neto me vieram à mente todos os velórios que já presenciei. Isso me fez perceber o quanto de memória enterrada tenho em minha mente... De fato ela é quase um cemitério ambulante. Vou encarar isso como algo positivo: afinal, se temos o que recordar é porque pudemos viver.
Todo esse assunto me remete à uma crônica que que li há um tempão atrás e que já não me lembro bem de quem era. O autor relatava o envolvimento de um homem com uma casa velha, de mais de cem anos. Sabemos que casas assim têm muita coisa pra conta -  pena que são mudas! (Vou abrir um parêntese aqui: Ta aí uma coisa que, se um dia eu pudesse falar com Deus, eu o aconselharia a mudar. As coisas "inanimadas" devem ter muito a contar, imaginem só... Elas ficam ali, paradas no silêncio dos cômodos. Não se intrometem em absolutamente nada, mas presenciam muitas histórias.) Voltando à crônica, um homem comprou essa casa centenária e ficou tão apaixonado por ela que queria descobrir tudo que ela já tinha vivido (viu como devo aconselhar Deus?). Então, ele decidiu retirar aos poucos as camadas de tinta das paredes dessa casa: a cada camada retirada ele podia ler tudo o que a casa tinha presenciado. A cada camada retirada mais apaixonado ele ficava. Seu desejo era ler a alma da casa, saber exatamente quem ela era. A cada leitura o homem se entregava às emoções impregnadas naquelas paredes: sentia dor, alegria, mágoa, amor, desespero. Foi a mais linda e maravilhosa experiência estética da vida desse homem.
Muitas vezes as lembranças eram pesadas e o empurravam para abismos intermináveis. Nesses momentos até pensava em desistir. Ele já não percebia mais o limite que o separava da casa: eles já se pertenciam um ao outro. Mesmo sem saber como lidar com todo aquele peso, ele continuou. Quando chegou à última camada sentiu uma das maiores alegrias de sua vida, mas foi muito rápido e logo essa sensação desapareceu. O homem, já não tendo mais o que retirar, ficou atordoado.  Precisava continuar aquela busca desenfreada pela essência da casa, mas não havia mais o que ler. Acabou. Não entendia o que tinha feito de errado, acreditou ingenuamente que chegando ao fim seria presenteado com uma verdade absoluta. Passou dias sem entender como que a sua paixão, que antes o iluminava, agora o mantinha na escuridão.
Percebeu, enfim, que a casa não era nada sem as suas camadas. Eram suas memórias, suas vivências que a faziam ser o que era: uma essência construída e lapidada por cem longos anos. E foi nesse momento que se deparou com as inúmeras possibilidades de inserir mais camadas de vida naquelas paredes e fazer de suas lembranças algo imortal. 
Bem... Já não lembro mais se a crônica era realmente assim. Apostaria as estrelas com você que nesse texto tem muito mais do meu DNA do que do autor. O azar é todo dele: ninguém mandou publicar algo que possa interessar a alguém e ser surrupiado sem nenhum pudor, muito menos por uma menina sem compromisso moral de pagar pelos direitos autorais. Mas isso tudo foi apenas para explicar o meu parto e inspiração, que é o seguinte: muitas vezes tiramos tantas camadas de nossa alma que chega um momento em que não nos reconhecemos mais. Quando isso acontece, é importante vestir novamente algumas delas. Não nos descobrimos apenas quando nos despimos de nós, muitas vezes nos encontramos quando voltamos o olhar para nossas antigas roupagens. Algumas não servem mais, mas ainda assim vale a pena darmos uma olhadinha para elas, apenas como uma referência do que já fomos. Pare um momento e pense: quantos de você o habitam? Temos aqui uma possibilidade de viajar em nós, viajar pelos nossos momentos e perceber que somos um conjunto de nós mesmos: somos o nosso céu e o nosso inferno, somos o que éramos e o que queremos ser. E ter a possibilidade em nossas mãos é a oportunidade perfeita de nos tornarmos a causa de nós mesmos e não o efeito de algo.
Discordo do ditado que diz que recordar é viver: não, não e não! Recordar é recordar, viver é isso aqui agora: eu sentada no sofá com o computador no colo e a TV ligada onde passa uma novela bem antiga. Recordar é nos reconhecermos em outras roupas, com outros penteados, e isso é imutável.  Agora o "agora" está bem em minhas mãos: sou senhora do tempo, do meu tempo e do meu futuro. Ah, o futuro! Desse eu nem vou falar. Afinal, não é à toa que a parte mais gostosa da bolacha fica no meio, a salsicha fica entre os pães e o melhor calor é aquele que nasce entre dois corpos. Mas não se esqueça jamais que quando misturamos o molho no purê de batatas eles nunca mais se separam. 

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Não chegue na hora marcada...

Levante a mão quem já teve que dizer adeus!
Eu sei, doeu né?! Aqui também.
Inevitavelmente a vida, ou a morte, tiram da gente o que querem sem ao menos pedir permissão. Ainda bem! Penso que se não fosse assim eu seria colecionadora de nadas. Enfim... Essa é a dinâmica da vida.
Foi embora uma carreira, o homem da sua vida, a viagem dos sonhos, o dinheiro, o cachorro, a estabilidade de um lar, a Nona, o Pai e até nossas referências de vida. 
Ouvi recentemente: não é porque você está sofrendo que o mundo irá parar. Ainda bem que não parou, do contrário ainda estaria presa em situações que já não mais podiam continuar e perderia muito mais. Viva a vida!
Alguns adeuses eu escolhi, mas nem por isso eu sofri menos. Outros eu fui obrigada a engolir e não tive nem se quer um pãozinho como acompanhamento, foi a seco mesmo.
A verdade é nua, crua e nem sempre generosa. Ainda assim é a minha predileta.
Para uns eu devo pedir perdão, para outros peço paciência enquanto exercito a minha capacidade de perdoar. Estou aprendendo que nem tudo tem explicação. Aceitar para doer menos... Eis meu novo mantra.
Heidegger diz que o homem é um ser-para-a-morte visando sua plenitude no fim da existência. De forma simplista interpreto essa morte como as perdas significativas. Vivemos com a facticidade como companheira, ela pega nossos rostinhos e esfrega no asfalto quente mostrando que, apesar de sermos donos de nossas vidas, não estamos no controle de tudo. Aí eu pergunto: e quem gostaria de ter o peso desse controle absoluto?

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Corra Lola! Corra!

Ah, mundo!! Ele exige que sejamos uma fortaleza, um poço de certeza e um compêndio de realizações. Todo dia uma batalha. Não lhe darei falsas esperanças, isso não vai mudar.
Agora vamos atravessar o espelho e falar de coisas aparentemente não tão positivas... Aparentemente.
Como por exemplo, aqueles momentos em que queremos fugir, quando nossas pernas querem apenas correr. Para essas situações eu tenho um conselho: Fuja! Corra! Se esconda!
Busque seu cantinho, que seja em baixo da pia ou na cama quentinha. Vá comprar cigarros, chocolates ou um lápis, vá e demore um pouco mais para voltar. A poeira vai baixar e todas as cores voltam depois da tempestade.
Não há nada de errado em se esconder. Às vezes o meu monstro é muito maior que eu, mas e daí? Só preciso de um tempo para remendar minha coragem. Há coisas que não conseguimos encarar e não somos menos dignos por conta disso. O que você não tem, você não precisa agora.
Suas certezas te abandonaram? Talvez vocês não sejam mais uma boa companhia uma para outra, deixe-as partir. Talvez seja a hora de tirar a fantasia de Sísifo e parar de fazer coisas que não levam a nada, não mais.
Minhas incertezas são as minhas orações e há virtude nelas, há luz. Elas mudam minhas lentes, meus pontos de vista e minha pele. Como é bom trocar a pele! E quando não, de repente, você se vê na estrada sem nenhum destino? Sem objetivos? A inércia programada (expressão que inventei agora) te oferece a oportunidade de avaliar as possibilidades. Não aquelas que você perdeu. Essas são mortas, esqueça. Seria um desperdício de tempo e neurônios. Poupe-os. Mas, caso tenha uma segunda chance, então agradeça. O importante é manter a calma, não se lance ao abismo. Qual foi o contrato que assinamos no ventre de nossas mães que, assim que lançados no mundo, teríamos certeza de tudo? A vida te oferece respostas. Mesmo que você não saiba, você ainda pode sentir. Se não conseguir sentir, espere... Apenas espere.