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quarta-feira, 5 de maio de 2021

Entrelinhas #2 - Quem tem medo do Comunismo?

Fonte: Boitempo 
A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade sua o que possuía. Tudo entre eles era comum. Com grande eficácia os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus e todos os fiéís gozavam de grande estima. Não havia necessitados entre eles. Os proprietários de campos ou casas vendiam tudo e iam depositar o preço da venda aos pés dos apóstolos. Repartia-se, então, a cada um segundo a sua necessidade. José, chamado pelos apóstolos de Barnabé, que significa filho da consolação, levita e natural de Chipre, possuía um terreno. Vendeu-o e foi depositar o dinheiro aos pés dos apóstolos. (Atos 4, 32-37).
Antes de iniciarmos um bate-papo sobre essa obra de Marx e Engels que apresento a vocês nessa belíssima edição comemorativa dos 100 anos da Revolução Russa (1917-2017), quero fazer uma pequena ressalva: embora esse pequeno artigo componha a série "Entrelinhas", que iniciamos há muito tempo, meu objetivo não é revelar ideias supostamente ocultas no texto, tampouco apresentar uma análise profunda da obra. Pretendo apenas partilhar algumas impressões da primeira leitura, das reflexões que me ocorreram a partir daí e do contato com a obra nessa edição.  
O livro que tenho em mãos reúne os seguintes textos: Manifesto Comunista; Prefácio (do Manifesto Comunista) à edição inglesa de 1888, por Friedrich Engels; Teses de Abril e Cartas de Longe, de Vladímir Ilitch Lênin; e introduções (ao manifesto e às teses) por Tariq Ali. Além da beleza da composição no que se refere aos elementos gráficos, estamos diante do trabalho rigoroso de uma editora que, em 20 anos de existência, conquistou 13 prêmios. Considerando a densidade dos textos, decidi abordar nesse momento apenas alguns aspectos do Manifesto Comunista. 
"UM ESPECTRO ronda a Europa - o espectro do comunismo". Com essa frase emblemática os autores principiam o texto. E eu a escolhi apara iniciar as reflexões que não se encerrarão aqui porque uma frase semelhante vem sendo proferida, há alguns anos, por pessoas que supostamente desejam "salvar" o Brasil de uma ameaça terrível: "Um espectro ronda o Brasil - o espectro do comunismo". Essa afirmação equivocada finalmente me trouxe até Marx e Engels, e é em razão dela que inicio essa jornada. 
No que se refere à fluidez de leitura, diria que pessoas que possuem certa familiaridade com textos filosóficos podem ter mais facilidade para compreendê-lo. Entretanto, o texto (e penso que os autores também) não exige do leitor uma iniciação à Filosofia para compreensão das ideias ali expostas: o raciocínio é explícito, preciso, objetivo. Ademais, as introduções e a boa vontade de procurar informações adicionais sobre o contexto em que o texto fora produzido e os filósofos que inspiraram os autores (Hegel, por exemplo) também podem colaborar para a compreensão do texto. 
Algumas críticas amplamente difundidas a respeito do comunismo - a falibilidade de sua aplicação em modelos de sociedade ou a equivocidade da previsão dos autores em relação à extinção do capitalismo ainda vigente - revelam o total desconhecimento da obra: afinal, o Manifesto não é um manual de instruções. Toda e qualquer revolução pressupõe a ação de inúmeros elementos. À guisa de ilustração, Lênin expõe nas Cartas de Longe (presentes nessa edição) de maneira didática os fatos que contribuíram para o sucesso da Revolução Russa. Quanto à "vigência" do capitalismo, diria que o tema merece um texto à parte. Uma análise mais aprofundada. Mais leituras. Deixo apenas uma provocação: permanece vigente a que preço e por quanto tempo?
Para encerrar a pequena reflexão de hoje, gostaria de tecer um breve comentário acerca da escolha do versículo bíblico utilizado como abertura dessa reflexão. Para os autores, a religião é um instrumento de dominação que deve ser superado. Talvez por isso a escolha do versículo bíblico incomode tanto os marxistas/marxianos mais ferrenhos, quanto os cristãos mais ortodoxos. Observando a atuação de alguns líderes religiosos, tenho que concordar com eles, mesmo sendo cristão católico. Arriscaria dizer que no século XXI Jesus Cristo não seria cristão, e muito provavelmente seria preso ou morto em nome de determinados "valores", "morais", "tradições". Observando a passagem bíblica destacada, percebo que o legado deixado por Jesus Cristo é a construção de uma sociedade onde a justiça social esteja plenamente efetivada, ideal igualmente perseguido por Marx e Engels. Observando o Brasil de hoje com todos os seus problemas sociais, políticos e econômicos, refaço a você a pergunta que nomeia esse texto: quem tem medo do comunismo?

Referências

Atos dos Apóstolos. Português. In: Bíblia sagrada. Trad. Mateus Hoepers (Novo Testamento). 50 ed. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p. 1287-1324. 

MARX, K; ENGELS, F; LÊNIN, V. I. Manifesto comunista/Teses de abril. Textos introdutórios de Tariq Ali. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017. 


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Brincadeira literária*

As redes sociais são uma fábrica de distrações. A última que tive contato foi em forma de brincadeira literária, e consistia em publicar capas de livros de sua preferência. O número de indicações era limitado em sete e não poderia mencionar nada sobre os livros: apenas a imagem. Triste desafio para quem adora conversar sobre os livros, falar sobre as características das personagens e até mesmo dar e receber spoilers — mas somente em situações previamente autorizadas! Como poderia ficar sem falar das leituras que tanto gosto? Como conter toda a empolgação ao narrar minimamente a sinopse de um livro ou explicar que é impossível não torcer pela personagem de tal história? Como não compartilhar o brilho nos olhos ao lembrar de um clássico que me tocou a alma? De fato, seria um desafio. Mas os muros para um leitor nunca são tão altos e, seguindo os passos de Max, um judeu que ficou escondido no porão de uma Menina que roubava livros, vou dar um jeito de escrever o que me transborda o peito. Só não vou desenhar, porque essa habilidade eu não tenho!
A tarefa inicial: separar os livros! Tarefa fácil, se fosse uma lista de 100 livros em vez de 7. Quero todos, pode? A cada livro que eu pegava era um momento, um cheiro, uma pessoa, uma linha de ônibus, um contexto de vida, um dia frio, um bom lugar, um Djavan...Viajei. Mas, vamos aos livros.

O primeiro livro que habita todas as minhas listas é A Insustentável leveza do Ser, de Milan Kundera. Que delícia de nome, que delícia de história! Amo esse livro e não consigo explicar porquê o amo. Dramático, inquietante, estranho e filosófico. Esse livro me mostrou o quanto somos socialmente pequenos, mas imensos enquanto seres humanos. O quanto somos complexos e vastos. Foi indicação de uma amiga, empréstimo, logo em seguida comprei o meu. Não queria apenas possuir a história, queria abraçar o livro. Eu não conseguia dormir sem ler uma página que fosse. Esse livro me conduziu a profundas reflexões.

Segundo livro, A Mulher desiludida, de Simone de Beauvoir. Essa mulher dispensa apresentações e o livro é maravilhoso. Apesar das diferenças de época, continua atual. São três contos que narram os medos, a desesperança e a condição da mulher na sociedade. Quando li esse livro estava despedaçada. As mulheres dos contos também estavam, e de certa forma isso ajudou a me reconstruir. Eu me vi naqueles contos e arrisco a dizer que aquelas mulheres se viram em mim. É a magia da leitura.

Terceiro livro, Frankenstein, de Mary Shelley. Outra mulher que dispensa apresentações. Mary Shelley foi uma mulher à frente de seu tempo. A primeira edição de Frankenstein foi lançada em janeiro de 1818: são 200 anos e ainda nos fascina. Apaixonada pela criatura, sofri ao seu lado na maior parte do tempo. Apesar de ser considerado um monstro, ele é sensível e lida com as mais fundamentais questões humanas. Foi interessante acompanhar essa criatura que desperta para sua triste condição ao ser abandonada pelo seu criador,  e poder entender suas revoltadas, seus anseios, seus medos.

Quarto livro, As cem melhores crônicas brasileiras, vários autores. Esse aqui eu considero um golpe que estou dando, pois será cem em um! Temos Machado de Assis, Lima Barreto, Olavo Bilac, Rubem Braga, Vinícius de Moraes, Oswaldo de Andrade, Alcântara Machado, Rachel de Queiroz, Mario de Andrade, Humberto de Campos, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Millôr Fernandes e outros pesos-pesados da nossa literatura. As crônicas são apresentadas por anos, começando em 1850. Dessa forma, o leitor pode perceber as mudanças nas formas de narrativas, como também as mudanças dos contextos sociais. Ganhei de presente de um tio, também filósofo. Ler esse livro foi o mesmo que consumir pedaços de felicidades, ainda é uma doce recordação. Crônica sempre foi um dos meu estilos prediletos. Esse livro me acompanhou por muitos anos, ali na bolsa, guardadinho. Gostava de abri-lo e lê-lo ao acaso. A transição da escrita sempre me trouxe um certo conforto de que, apesar dos pesares, tudo passa.

Quinto livro, O Estrangeiro, de Albert Camus. Sempre que lembro desse livro paro por alguns segundos e sinto um estranhamento. O relato é em primeira pessoa, sobre a vida de M. Mersault: um homem que vive sua vida de forma livre, mas sem a consciência dessa liberdade. A personagem não se afeta com os acontecimentos em sua vida e não vive uma vida de acordo com as normas sociais, mas como deseja viver. Camus aborda a questão do significado que a sociedade tenta atribuir à existência. Quem nunca se perguntou: qual o sentido da vida? Será que tem? Li esse livro no período da faculdade. Devorei, me senti estranha. Voltei a ler alguns anos depois, senti novamente o estranhamento. Ouvi dizer que na terceira vez é melhor.

Sexto livro, A trilogia Jogos Vorazes, Em Chamas e A Esperança, de Suzanne Collins. Outro golpe à vista, três em um! Do grupo das literaturas populares. Caiu nas graças dos adolescentes, virou filme e fez um enorme sucesso. A história se passa em um futuro distópico onde os Estados Unidos da América, após total destruição, se transforma em 12 distritos e 1 capital. Para manter um determinado controle e ausência de rebeliões, a capital cria os Jogos Vorazes. Anualmente, duas pessoas de cada distrito são sorteadas para participar desse reality show mortal. Todos são levados até uma arena montada tematicamente e lutam até a morte. Esses jogos se assemelham aos combates entre os gladiadores romanos. Por que eu gosto disso? Com toda a certeza a autora bebeu de fontes preciosas como 1984, de George Orwell. Toda a narrativa levanta questões políticas de manipulação midiática, totalitarismo, opressão, discurso de ódio, consumismo, desigualdade social e fascismo. Além disso tudo, temos todo o drama da personagem que nos prende. Li os três livros seguidos. Ainda lembro da sensação de entrar nesse universo distópico e caótico do choro da personagem, dos barulhos das bombas, da raiva e de algumas alegrias, bem poucas alegrias.

Sétimo livro, Sociedade sem lei, pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie, de Rubens R. R. Casara. Com pesar, chego ao sétimo e último livro. Foi uma escolha difícil. Existem ótimos concorrentes para essa posição, mas julguei necessário escolher esse livro por conta do momento em que estamos vivendo. Também precisamos olhar e estudar sobre o nosso contexto atual. Casara é juiz de direito no Tribunal de Justiça no Rio de Janeiro, e em seu livro trata dos danos causados à sociedade pelo capitalismo e sistema neoliberal onde o homem não é mais a medida de todas as coisas e sim o dinheiro — o homem não é coisa alguma. Fala-nos de uma sociedade construída pela racionalidade neoliberal, que resulta em uma nova economia psíquica gerando, assim, pessoas sem limites e consequentemente uma sociedade sem limites. Leitura muito pertinente. Ainda não finalizei o livro, pois para compreender ou ampliar o conhecimento vou lendo em paralelo outros livros. Desse em específico fui para Psicologia das multidões, de Gustave Le Bon, e voltei a ler Educação após Auschwitz, de Adorno. E assim, sem perceber, dou mais um golpe e indico outros dois.

O mundo da leitura é isso: transitar por vários mundos, aprender e reaprender. A leitura é também a amplitude do sensorial: é sentir uma época, um desejo, um sentimento, um aroma. É ouvir uma melodia que não está presente nos seus ouvidos. Aprender novas línguas, novos povos. É o encontro de novos olhares. É na leitura que muitos podem viver em nós. Ler é a principal ferramenta para a nossa educação. Através da leitura amplio meu conhecimento, meu repertório. Passo a olhar o mundo como um sujeito crítico, posso transformá-lo.

Talvez seja assim só para mim e para você seja de outra forma. Qual a sua forma?

Pois bem. Essa lista não tem muita coerência: está tudo misturado! Tem um pouco de tudo que gosto, mas sei que desconheço um mundo de coisas que poderia vir a gostar. Uma vida não é suficiente para ler tudo que há para ser lido, mas uma certeza eu tenho: que sempre vou amar livros e sempre vou amar ler. Livro é tão bom que deveria ser declaração, tipo: eu te LIVRO!

*Texto publicado originalmente no site do Espaço Monica Aiub

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Entrelinhas #1 - A mulher dos pés descalços de Scholastique Mukasonga: um conto de fadas às avessas

Profª. Ma. Carolina dos Santos Rocha
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP
E-mail: carolrocha83@yahoo.com.br

Fonte: Editora NOS

Em primeira pessoa, a narradora-personagem nos apresenta a mola propulsora deste livro: sua mãe, Stefania, uma mulher forte que busca incansavelmente pela sobrevivência de seus filhos e cujo único desejo era que seu corpo fosse coberto por suas filhas, pois segundo a tradição daquele povo, ninguém podia ver o corpo da mãe desnudo, apenas as filhas poderiam cobri-lo. No entanto, devido ao massacre de Ruanda, a autora não pode enterrar seus mortos, tão pouco cobri-los, mas oferece as palavras de seu romance como mortalha, uma homenagem a tantas mulheres ruandesas que perpetuaram a história de seu povo porque resistiram à violência.
O romance A mulher dos pés descalços narra o cotidiano de uma família ruandesa em situação de exílio devido ao conflito entre hutus e tutsis. Com uma linguagem fluída, a autora nos apresenta a cultura daquela região. Embora o relato do massacre entre hutus e tutsis tenha rendido até prêmios no cinema, aqui esse fato chocante não é protagonista. Parafraseando um verso de canção — permita que eu fale e não as minhas cicatrizes — nesse romance a voz é dada às histórias singulares de cada mulher e não às suas dores.
A narrativa sobre mulheres e a maneira como elas se organizam e protegem suas famílias nos conduzem enquanto leitores ocidentais a um mundo muito distante: um conto de fadas às avessas, pois não tem príncipe nem final feliz. No entanto, conhecemos a fada madrinha Suzanne, que iniciava as moças à vida sexual e assegurava-lhe que estava tudo bem. Há também a bruxa má Kilimadame, empreendedora, aprendeu a fazer pão, abriu um hotel e enfeitiçava os homens. E como uma matriosca, a narrativa se revela em diversos microcontos como, por exemplo, a história de Fortunata e sua doença do amor e de Cláudia, a órfã que não arranjava marido, mas com a ajuda das mulheres conseguiu se casar.
Vale ressaltar que muitas vezes no decorrer desses microcontos, a linguagem metafórica empregada pode suscitar uma discussão muito difundida na crítica literária: o imaginário e a importância de recontar o trauma. Alguns teóricos comentam a respeito do efeito terapêutico do narrar com o intuito de construir a realidade. Especificamente a respeito do relato do trauma, Gagnebin (2009) comenta a importância do narrador e do historiador na modernidade:
O que são esses elementos de sobra do discurso histórico? [...] aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que mesmo a memória de sua existência não subsiste — aqueles que desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus nomes. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo — principalmente — quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido (GAGNEBIN, 2006, p.54, grifo nosso).
Cabe então a uma das filhas de Stefania, a narradora, transmitir o inenarrável em memória aos mortos e aos anônimos que constituem a sociedade matriarcal de Ruanda. Dessa maneira, durante a narrativa sobre aquela família, também conhecemos aspectos culturais importantes dos tutsis: o inzu, o sorgo, a medicina, o pão, os casamentos bem como os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres, sobretudo, as mulheres. Sendo assim, o romance traz a história não oficial ou não dominante tão importante para, entre outras finalidades, a sobrevivência da memória de um povo contada por ele mesmo.
Quanto aos papéis sociais tão bem descritos na narrativa a respeito de homens e mulheres é possível destacar uma linha de pensamento filosófico adotada pelo ocidente e que tenta resgatar África ao seu povo em diáspora: trata-se do mulherisma africana ou africana womanism. 
Segundo Cleonora Hudson-Weems, a africana womanism é centrada na família, ela é forte em conjunto com os homens, “respeitando e reconhecendo espiritualmente seus pares masculinos, respeitando os mais velhos, sendo adaptável, ambiciosa, materna e nutridora”. E, em relação aos homens negros: “as mulheres negras não percebem os homens negros como inimigos, consideram como o inimigo as forças mais amplas e opressivas da sociedade que subjugam os homens, mulheres e crianças negras”. Assim observamos no trecho a seguir: 
As reuniões do ikigo constituíram o verdadeiro parlamento das mulheres. Os homens, por sua vez, cuidavam da justiça e dos negócios de fora da comunidade; [...] As mulheres eram responsáveis pela educação, saúde, economia e assuntos matrimoniais...Cada um tinha direito de falar, pelo tempo que quisesse, sem ninguém interromper. Não havia maioria, não havia minoria. As decisões eram tomadas quando todos consentiam. (MUKASONGA, 2017, p.136). 
Ao contar sua própria história, o romance traz à tona um sentimento de identidade racial no que diz respeito ao nosso passado colonial porque em diversos trechos apresenta-se a cultura do colonizador branco em oposição à cultura local, como por exemplo, o uso de calcinhas, as religiões, os remédios. Era considerado civilizado aquele que adotava os costumes brancos e, somente as crianças batizadas tinham acesso à educação. 
Scholastique Mukasonga expõe em seu romance de maneira atenta e crítica sobre a importância da educação formal para as mulheres tutsis. A narradora descreve o ato subversivo de sua mãe, Stefania. Ela não se conforma em ver uma menina privada do direito de ir à escola, e rapidamente, por meio de uma delegação de mulheres convence o professor Bukuba a alfabetizar a criança, colocando Gloriosa — nome de batismo — na escola. 
Assim, A mulher dos pés descalços não é um relato, mas uma resposta crítica da subalternidade para o poder instituído pela força. Stefania, por meio de suas estratégias de sobrevivência e sua agência em reunir mulheres em assembleia e decidir questões importantes para sua comunidade transmite um ato revolucionário e esperançoso para quem está aberto a outros paradigmas. 

Referências

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009. 

HUDSON-WEEMS, Cleonora. Africana Womanism – O outro lado da moeda. Trad. Naiana Sundjata. 2012. Disponível em: https://quilombouniapp.wordpress.com/2012/03/22/africana-womanism-o-outro-lado-da-moeda/. Acesso em: 20 mar. 2020. 

MUKASONGA, Scholastique. A mulher de pés descalços. Trad. Marília Garcia. São Paulo: Nós, 2017.


Mestra pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Possui graduação em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. Atualmente é Professora de Educação Básica II na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Idealizadora do clube de leitura Café Preto (Currículo Lattes). Café Preto - Facebook / Instagram





sexta-feira, 10 de abril de 2020

O fim dos Beatles

It was fifty years ago today




Há exatos 50 anos, no dia 10 de abril de 1970, Paul McCartney anunciava durante uma entrevista o fim da maior banda de todos os tempos. Após aproximadamente 10 anos de uma história musical que estava em constante ascensão e crescimento monumental, os Beatles iriam se separar de uma vez por todas. 
Muitos foram os motivos que levaram às brigas e dissolução da banda, dentre os quais destacam-se a rivalidade e constantes desentendimentos entre os membros, principalmente entre John Lennon e Paul McCartney; o desânimo do guitarrista George Harrison por ter suas composições e contribuições constantemente descartadas; o baterista Ringo Starr que não se sentia valorizado pelos demais colegas; o relacionamento entre John e Yoko que desequilibrava a harmonia no trabalho em estúdio e as inúmeras dívidas e empreendimentos malsucedidos que faziam com que a banda perdesse quantidades absurdas de dinheiro. 
Mas será que a história do triste fim da maior banda que já existiu pode nos ensinar alguma coisa hoje, mesmo após 50 anos? 
A história dos Beatles é um exemplo de que, quando queremos e estamos dispostos a melhorar, nós entramos em uma constante evolução em todos os âmbitos de nossa vida. Ao ouvirmos o primeiro álbum, Please Please Me de 1963, não dizemos que é a mesma banda que está no álbum Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band de 1967, oitavo disco de estúdio. 
É extraordinário acompanhar os primórdios da história dos 4 meninos de Liverpool, que começaram com músicas simples (porém excepcionais) de garotos apaixonados, como She Loves You por exemplo, e passaram por um amadurecimento musical que acabou por influenciar todas as gerações de músicos até os nossos dias, com letras e arranjos complexos, que apresentam uma genialidade e originalidade únicas na história da música. 
O fim do Fab Four nos mostra que, por mais que algumas fases em nossa vida sejam extraordinárias, marcadas por experiências e realizações que não gostaríamos que acabassem, nós crescemos, evoluímos, e com isso os ciclos se encerram e tomamos caminhos diferentes. Às vezes, é melhor encerrar um ciclo no momento certo, para que tudo que foi vivido até aquele momento seja uma saudosa lembrança de dias bons, de alegrias e aprendizados, porém na certeza de que devemos caminhar sempre adiante. Pois, quando menos esperamos, nossas histórias podem mudar e tomar rumos completamente diferentes após um simples ato de atravessar a faixa de pedestres. E depois, nos resta apenas seguir em frente e “Let it be”
Que possamos viver nossa vida do mesmo modo como apreciamos um disco dos Beatles: repleto de beleza; de melodias alegres, tristes e esperançosas; de momentos maravilhosos, sabendo que mesmo após o disco ter tocado a sua última faixa tudo terá valido a pena. 

“And in the end, the love you take is equal to the love you make.” 
(Lennon/ McCartney)

Diego Rocha 

Diego de Souza Rocha é um publicitário paulista de 29 anos. Amante da arte, da filosofia, da poesia, da literatura, da música, da natureza e de toda a beleza que a vida pode proporcionar.

domingo, 29 de março de 2020

Por trás das cenas #1 - American Son

Profª. Ma. Carolina dos Santos Rocha
Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP
E-mail: carolrocha83@yahoo.com.br

American Son – Netflix – 2019

Fonte: Netflix

Filme produzido pela Netflix, sob direção de Kenny Leon, narra o conflito racial entre uma mulher negra, Kendra, e a polícia. A mãe tenta saber a localização do filho Jamal que saiu de carro durante à noite e não retornara. Kendra, doutora em Psicologia e professora universitária, fora casada com Scott, um homem branco, agente do FBI. Jamal é miscigenado e passa por um “despertar” racial segundo afirma a mãe do personagem: tem cabelo trançado, usa roupas de um estilo de rua e adesivou o carro com os dizeres “Dispare em policiais”, uma mensagem subliminar de autodefesa que instrui meninos negros a tirarem fotos de ações policiais.
O filme, baseado em uma peça da Broadway, é ambientado em único espaço — a sala de espera de uma delegacia — e, há poucos personagens em cena que, em geral, aparecem em duplas em longos diálogos.
O primeiro diálogo acontece entre Kendra e o policial Paul. Desesperada, a mãe quer registrar o desaparecimento do filho e, o policial tenta a busca por uma ocorrência policial. Por diversas vezes, Kendra reafirma, por meio de uma descrição humanista, que seu filho não tem antecedentes criminais. Ela destaca as preferências de Jamal, mas não é isso que o policial busca. O agente da lei procura por nome “de guerra” ou a marca de alguma cicatriz provocada por briga.
Depois Kendra discute com Scott, pai de Jamal. Ela o repreende por sua linguagem de “gueto” e nota que em poucos minutos o policial passou as informações a ele, homem e branco. O ex-casal discute sobre suas diferenças raciais e sobre como o filho se sente “a cara da raça” na escola particular que o matricularam. A despeito destas diferenças, ambos acreditaram em uma educação de qualidade que colocaria Jamal a salvo de uma sociedade outrora segregada. Doutora em Psicologia, Kendra não ficou a salvo da discriminação racial, mas acreditou, conforme acusa o tenente Stokes, em um sonho americano.
Um “sonho americano” foi o que Scott tentou oferecer ao filho Jamal. Em um terceiro momento, O ex-marido branco discute com Kendra, seu discurso a deslegitima enquanto mulher, mãe e negra ao defender que as questões raciais não devem ser expostas, pois traz um desconforto aos brancos. Pra ele, Jamal não deve trançar cabelo e nem falar feito um “mano de rua”: — "Ele faz parte do meu mundo, não do seu", diz Scott a Kendra. Ao ser confrontado seja pelas circunstâncias, seja pela ex esposa, Scott é obrigado a enfrentar as diferenças raciais presentes entre ele e o filho Jamal. 
A maternidade negra é discutida em cena. Kendra não dorme, como a maioria das mães, no entanto, ela tem preocupações exclusivas: o filho é maior de idade e decide viajar para o sul do país com outros amigos. Segundo bell hooks, em sua obra Olhares negros, raça e representação, “viajar” é o espaço da branquitude: “[...] viajar é se deparar com a força aterrorizante da supremacia branca”. Kendra se aterroriza pelo futuro do filho porque sabe que o sul de seu país carrega uma marca segregacionista. 
A cena descrita por Kendra — o filho negro se interessa por uma moça branca na lanchonete e outro rapaz branco o ataca por isso — põe em debate um fato bastante comum no passado: os linchamentos de homens negros suspeitos de estupro. A imagem do homem negro enquanto estuprador em potencial foi forjada pós Guerra Civil, conforme afirma Angela Davis, em Mulheres, raça e classe: “A instituição do linchamento, por sua vez, tornou- se um elemento de terror racista do pós guerra” (p.189). Logo, o medo de Kendra se justifica em um passado histórico americano que pressupunha a culpa do homem negro. Desde que o filho nasce, as noites de sono das mães não são as mesmas — afirma o senso comum — no entanto, as preocupações das mães negras são singulares, pois se baseiam no racismo construído primeiramente com a escravização e, depois, com a segregação instituída pelas leis Jim Crow que não permitiram, por exemplo, as relações afetivas inter-raciais.
Dessa maneira, American Son é um filme que retrata os conflitos raciais tão literalmente que torna, infelizmente, óbvio seu desfecho trágico. Embora algumas diferenças históricas possam distanciar a análise de tais conflitos no contexto brasileiro, esta produção Netflix pode ser bastante didática em suscitar um debate saudável culminando no ensino afirmativo das culturas de identidade negra.


Mestra pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Possui graduação em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. Atualmente é Professora de Educação Básica II na Secretaria da Educação do Estado de São Paulo - Seduc/SP. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Idealizadora do clube de leitura Café Preto (Currículo Lattes). Café Preto - Facebook / Instagram 

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Por trás do som #1 - Metrô Linha 743

Metrô linha 743 – Raul Seixas – 1984




Antes de falarmos sobre tudo o que o “Raulzito” conseguiu criticar em uma música que à primeira vista soa inocente ou apenas mais uma daquelas loucuras habituais da década de 1980, vamos falar um pouco sobre quem era Raul e o que estava rolando no Brasil no momento em que esta canção veio a público em seu décimo segundo álbum cujo título é homônimo à música. 
Raul Seixas foi um dos grandes ícones do Rock n’ Roll brasileiro. Nascido em Salvador, Bahia, no ano de 1945, Raulzito, como era chamado, cresceu em uma família de boas condições financeiras, tendo acesso a uma boa educação e também aos muitos livros da biblioteca particular de seu pai, onde passou a maior parte da sua infância, segundo ele mesmo. 
Sua infância e juventude voltada aos livros o tornaram um homem com interesse em muitas áreas de conhecimentos como a filosofia, a física, a metafísica, a teologia, a astronomia e muito mais. 
No ano de 1984 o Brasil já havia vivido quase todos os anos de ditadura civil-militar que pôde. Esta, que viria a findar em 1985, teve como suas maiores características a caça e censura aos artistas, intelectuais e, sobretudo, militantes ligados a organizações de esquerda. O Estado Militar, por meio de Atos Institucionais, censurou praticamente toda forma de levar notícias reais ao povo. Todo veículo de mídia era submetido a uma avaliação crítica feita por um militar encarregado. 
Foi no meio disso tudo que surgiu uma música difícil demais para ser censurada, divertida demais para não ser ouvida nas rádios e crítica demais para ser esquecida: “Metrô Linha 743”. 
Vamos à letra:
Ele ia andando pela rua meio apressadoEle sabia que tava sendo vigiadoCheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro?Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Este primeiro trecho é talvez o mais importante em termos de críticas ao que acontecia no país. O eu lírico da canção é um homem adulto que parece estar um tanto alheio às coisas que estavam acontecendo naquele período e, ao encontrar alguém que estava mais bem informado, começa a ouvir do seu interlocutor, por entrelinhas, os perigos que ambos corriam pelo simples fato de estarem pensando ou conversando um perto do outro.
Ele disse: eu dou, mas vá fumar lá do outro ladoDois homens fumando juntos pode ser muito arriscado!
Aqui temos uma das grandes pistas do que está acontecendo no cenário da canção. O homem que estava fumando seu cigarro sente medo de que outra pessoa pare e fume perto dele pois, nos tempos da ditadura, além da constante sensação de estar sendo vigiado pelas polícias políticas, qualquer tipo de reunião poderia soar como um murmurinho a fim de dar inicio a um movimento revolucionário.
Disse: O prato mais caro do melhor banquete éO que se come cabeça de gente que pensaE os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensamPorque quem pensa, pensa melhor paradoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoDesculpe minha pressa, fingindo atrasadoTrabalho em cartório, mas sou escritorPerdi minha pena nem sei qual foi o mêsMetrô linha 743 
Nesta parte temos mais uma grande crítica: um Estado repressor e autocrático não confia em intelectuais e jornalistas comprometidos com a verdade. Quando o interlocutor diz que o prato mais caro é “o que se come cabeça de gente que pensa” ele está pura e simplesmente falando que para o governo, intelectuais e universitários eram os mais procurados por conta de sua capacidade de não cair nas propagandas que visavam dar uma falsa sensação de que tudo estaria muito bem no país. Assim como o trecho “Perdi minha pena nem sei qual foi o mês” refere-se ao fato de que todos que exerciam o ofício da escrita, em algum momento, sem aviso ou sem motivo claro eram vedados de publicar em jornais e revistas, desta forma, tendo que procurar outros empregos para sobreviver. “Perder a pena” é uma maneira figurada de dizer que perdeu o direito de escrever já que a pena de nanquim é um dos símbolos da escrita.
O homem apressado me deixou e saiu voandoAí eu me encostei num poste e fiquei fumandoTrês outros chegaram com pistolas na mãoUm gritou: mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos córneosEu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?Se é documento eu tenho aquiOutro disse: não interessa, pouco importa, fique aíEu quero é saber o que você estava pensandoEu avalio o preço me baseando no nível mentalQue você anda por aí usandoE aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custandoMinha cabeça caída, solta no chãoEu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vezMetrô linha 743
A partir desta estrofe, a canção começa a tomar um caminho mais ilustrativo, onde três homens armados (provavelmente militares pois, ao ser abordado, o sujeito pergunta se é pra entregar seus documentos) abordam o sujeito e, diferentemente do esperado, não querem ver seus documentos ou saber se ele era ou não uma ameaça ao Estado: estes homens querem saber sobre o quê o personagem estava pensando para poder fazer uma análise do valor que se poderia cobrar por sua cabeça, pois como dito “Eu avalio o preço me baseando no nível mental que você anda por aí usando”. Logo após, o sujeito já pode ver seu corpo sem sua cabeça. Ele perde sua cabeça (por cabeça, podemos tomar outros significados como senso crítico, capacidade de duvidar, intelecto) sem sequer perceber o momento em que isso ocorre, sem ser investigado, sem ter cometido crime algum. Aí encontramos a grandiosa crítica sobre a arbitrariedade das prisões no período militar.
Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinhaE eu era agora um cérebro, um cérebro vivo a vinagreteMeu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tieteFui posto à mesa com mais doisE eram três pratos raros, e foi o maitre que pôsSenti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhadoMeu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou griladoQuem será este desgraçado dono desta zorra toda?Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibaisMas o negócio aqui tá muito bandeiraDá bandeira demais meu DeusCuidado brother, cuidado sábio senhorÉ um conselho sério pra vocêsEu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mêsAh! Metrô linha 743
E, por fim, a estrofe mais pesada apesar de mais metafórica. No início da estrofe o personagem narra sua “cabeça oca” sendo jogada no lixo da cozinha e passando a viver como um cérebro vivo a vinagrete. Ora, para bom entendedor meia palavra basta. Este trecho fala especificamente sobre os cenários de tortura onde o sujeito da música, mesmo quase sem saber o que se passava no país, é confundido com líderes de esquerda e por isso é conduzido por algum militar de escalão médio (na pessoa do Maître) à sala onde seria interrogado. Ao chegar lá ele se vê ao lado de mais dois outros sujeitos, porém estes dois pareciam ser “pratos raros”, ou seja, pessoas muito procuradas pelas forças militares. Seguindo ele diz “Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado” o que denota toda a dor de estar sendo fortemente torturado sem ao menos saber exatamente porque aquilo estava acontecendo. 
Fechando o trecho, o personagem da música deixa um recado póstumo: “cuidado brother, cuidado sábio senhor...” e “eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês”. Aqui temos o recado de que já não havia mais certo ou errado, culpado ou inocente: qualquer cidadão, mesmo o mais desinformado, estava à mercê dos caçadores canibais que, com gosto, devoravam cabeças sem medir a gravidade de seus atos.
Chegamos até aqui e você deve estar se perguntando: “Ora, mas o que isso tem a ver com esse tal Metrô Linha 743?”. Muito simples! Perceba que o nome do Metrô surge de repente e fora de contexto ao final de cada estrofe; e que cada estrofe é uma espécie de denúncia a algum tipo de atrocidade causada pelo governo da época. Esta é a cereja do bolo desta grande lera. O Metrô que surge ao final de cada relato é uma alusão ao que estava acontecendo com os jornais e rádios da época. Com a censura imposta e o controle do governo sobre os veículos de mídia, nada do que acontecia podia ser noticiado, sequer comentado pelas ruas. Para, então, que os jornais tivessem o que falar e para que os brasileiros de regiões mais afastadas vivessem com sensação de que as coisas estavam todas funcionando muito bem, as notícias a que os cidadãos tinham acesso eram sempre relacionadas a alguma obra de Metrô, Trem ou Estrada que estavam sendo construídos ou reformadas para maquiar o desgoverno que se fazia.
Esta canção é uma obra prima do livre pensamento e da resistência contra toda forma de censura e de opressão. É um alerta para que nós, hoje, entendamos que se deixarmos que isso tudo aconteça mais uma vez, seja por apoiar ou por não entender exatamente o que está em curso, em algum momento qualquer um pode se tornar uma vítima pelo simples fato de estar pensando.